Organização e desorganização (1906)

 Rosa Luxemburgo critica os partidos revolucionários que, em nome de uma pretensa “confiscação”, roubam bancos e estradas de ferro para supostamente financiarem a revolução.

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No atual e determinante momento em que a revolução se prepara para uma nova fase de confrontos abertos decisivos com o absolutismo, é importante e imprescindível ponderar bem cada passo a ser dado pelas organizações do proletariado consciente.

À diferença do que aconteceu nas fases anteriores das lutas de massa, a espontaneidade deveria ter um papel bem mais reduzido, em favor de mais planejamento e ideias-guia. Na mesma medida em que, com o fim da breve carreira do liberalismo burguês, o centro da vida política volta às ações do proletariado revolucionário, dobra a responsabilidade que recai sobre a sua vanguarda, formada pelos partidos socialistas, e dobra também a obrigação de submeter cada detalhe da tática aplicada a uma rígida autocrítica.[1]

Por isso, como aconteceu repetidas vezes desde o início da revolução, precisamos de observações críticas sobre a tática de guerra que tem sido empregada ultimamente contra o governo, o qual, a rigor, nada tem em comum com o método e o objetivo da luta de classe revolucionária consciente. Essa autocrítica é tanto mais urgente para nós, porque uma dada parcela da nossa organização adotou, sem reflexão e maiores cuidados, a tática do PSP (Partido Socialista Polonês), correspondente à sua “postura revolucionária”, pequeno-burguesa e anárquica, o que aumenta seriamente o risco de romper com a tática – até agora,  coerente e homogênea – da social-democracia, desviando-a do caminho da revolução para a senda equivocada do prazer político aventureiro.

 Referimo-nos ao saque sistemático dos monopólios e dos cofres de dinheiro nos trens.[2] O entusiasmo e a admiração que os referidos atos desencadearam junto aos filisteus e à corja burguesa já deveriam ser sinal de alerta suficiente para o instinto sadio de um verdadeiro partido dos trabalhadores. É um fato há muito tempo comprovado, podendo ser utilizado, ao mesmo tempo, como pedra de toque infalível, que a burguesia – o que se aplica especialmente à nossa burguesia politicamente atrasada, a mais covarde entre todas as classes burguesas – fica tanto mais encantada com um método de luta e o compreende como sendo mais revolucionário, quanto mais este se apoiar em uma postura revolucionária externa, ou seja, estardalhaço e enfrentamentos, e quanto menos estiver baseado no trabalho intelectual da conscientização do povo. Para a burguesia, a “postura revolucionária” é indubitável quando se aproxima dos métodos do anarquismo. Já a “pólvora não-fumegante” da agitação e da verdadeira luta de classes não desperta junto à burguesia confiança ou compreensão, pelo menos até os combates de rua finalmente eclodirem e se tornarem fisicamente visíveis.

O aplauso unânime dessa corja burguesa aos “ousados e habilidosos “ataques aos monopólios e aos trens deveria bastar para alertar os participantes desse método de que provavelmente se afastaram dos verdadeiras objetivos e tarefas da revolução dos trabalhadores.

Vamos ao cerne da questão: quais são as consequências desses ataques? Primeiro, o enriquecimento do “partido” com consideráveis somas de dinheiro e a respectiva perda para o absolutismo agrada a esses néscios burgueses da revolução. Mas só mesmo entre seguidores encarniçados do culto grosseiro ao capital a força de um partido revolucionário ou do absolutismo depende da posse de capital em dinheiro. Naturalmente, a ruína econômica do absolutismo enquanto sistema de governo, quando perde seu crédito financeiro, além do político, é um dos fatores que aceleram seu declínio. Mas não é nem método nem tarefa do proletariado revolucionário consciente almejar a ruína financeira e o empobrecimento do absolutismo. A revolução dos trabalhadores usa a ruína financeira do tsarismo como fermento revolucionário, da mesma forma que se utilizou da guerra para favorecer a conscientização política e a luta de classes do povo trabalhador. Mas ela própria não pode querer usar o empobrecimento do governo, assim como não pode apoiar ou desencadear uma guerra capitalista, apesar das consequências revolucionárias dessa guerra.

Por outro lado, dinheiro e meios materiais são necessários na luta revolucionária. Mas num genuíno movimento operário e de massas só podem ser parâmetro de vigor na medida em que são o resultado natural das influências entre as massas trabalhadoras, bem como entre as camadas pequeno-burguesas ou burguesas que simpatizam com a revolução. Nessas influência morais na conscientização e no caráter de massa do movimento é que reside a força da revolução, e não no dinheiro acumulado, o qual, como tal, não é consequência desse caráter de massa e não faz avançar nem um milímetro a causa da revolução, antes sendo um peso ou, como nas condições atuais, um meio para desorganizar o próprio partido.

Da mesma forma não deveríamos nos deixar iludir nem um instante sequer pela denominação de “confisco”, como é geralmente denominado pelos partidos revolucionários o saque das caixas dos monopólios e dos trens. Em nome do povo e sob controle público do povo ativo, o governo revolucionário tem o direito e a obrigação de confiscar o patrimônio e as reservas pecuniárias ilegalmente apropriadas pelo banco do governo. Mas agora que o poder do governo continua nas mãos do bando de ladrões do tsarismo e que as organizações revolucionárias foram condenadas à atividade ilegal, em que não há nenhum poder nem controle públicos nomeados pelo povo, em que não é o povo, e sim um partido quem decide sobre as reservas em dinheiro – portanto, só um punhado de gente à sua  frente – ,  não se pode falar de “confisco” das reservas em dinheiro do tsarismo; e nenhum partido, na atual situação, pode se apropriar, por usurpação, dos direitos e obrigações que cabem unicamente ao povo vitorioso. O fato de que os partidos revolucionários utilizam – ou tentam utilizar – os meios financeiros saqueados para a causa e os objetivos da revolução não muda nada. Um verdadeiro partido operário pode e tem o direito de se enxergar como representante dos interesses do povo trabalhador e como sua vanguarda na luta revolucionária, mas jamais, em seus atos, poderá se identificar com o povo ou o governo revolucionário, a não ser que queira tornar o governo revolucionário um mero teatro de fantoches “revolucionário”.

Foi nossa intenção observar primeiro os objetivos e a importância positiva do suposto “confisco” revolucionário para mostrar que, como tal, é totalmente ilusório. Mas o prejuízo que vem depois dele não é nem um pouco ilusório, e sim um sério risco em desfavor da agitação entre os militares. Fato inquestionável e inevitável é que o saque de monopólios e dos cofres nos trens vai de mãos dadas com a matança de soldados; agora o governo destacou soldados especialmente para proteger os trens, expondo-os aos tiros dos revolucionários. Enquanto os enfrentamentos com o exército nas manifestações políticas, nos movimentos camponeses e de trabalhadores, na luta pela libertação de presos, etc., que resultam da luta política direta, podem ter efeito esclarecedor e revolucionário no próprio exército, a matança de soldados por um punhado de revolucionários armados que querem conseguir algum cofre do governo é algo incompreensível para os soldados, algo que os irrita e desmoraliza. De qualquer forma, o governo não deixa de fazer nada para difamar e desonrar a revolução aos olhos dos soldados, sistematicamente convencem os soldados de que os socialistas são um bando de patifes que se aventuram em terreno desconhecido e que querem acabar com a vida do soldado por um ganho material sujo. Justamente por ser tão difícil conscientizar o exército, por ele dificultar o acesso ao coração e às mentes dos nossos irmãos de uniforme, devemos evitar todos os mal-entendidos e as ambiguidades nas ações do proletariado. A luta de massas revolucionária e os inevitáveis sacrifícios a ela ligados devem ter um efeito revolucionário entre os soldados, mas os ataques isolados aos cofres por alguns idiotas armados e a consequente matança de soldados só podem ter efeito desmoralizador e antirrevolucionário.

Mas no atual momento em que a revolução se prepara para a fase decisiva, a posição do exército assume um papel muito mais importante e decisivo do que até agora. A direção política da revolução continua em mãos do proletariado urbano consciente e deve permanecer ali, mas a decisão sobre a vitória futura da luta de massas hoje está nas mãos do povo do campo e do exército.

Em face dessas tarefas sérias da revolução, qualquer passo leviano que rende homenagem à coragem revolucionária externa constitui um crime.

Que cada amigo e servidor honesto da revolução se lembre de que, hoje, um único soldado ganho para a causa da revolução vale mais do que 10 mil rublos confiscados com a arma na mão e na luta contra os soldados, e de que a tarefa do movimento revolucionário dos trabalhadores não é a desorganização do governo, e sim unicamente a organização, portanto o esclarecimento das massas populares e o seu fortalecimento para a luta.

Czerwony Sztandar, nº 99, 18 de agosto de 1906, p.1.  

Tradução: Kristina Michahelles 

* Publicado em Rosa Luxemburgo, Arbeiterrevolution 1905/06 – Polnische Texte, org. por Holger Politt, Berlim, Dietz, 2015, p.224-27.

[1] Em um artigo de opinião crítico de 4 de setembro de 1906 no jornal Robotnik, da ala esquerdista do PSP (Partido Socialista Polonês), lê-se o seguinte: “A primeira e mais importante causa para um acordo nas operações dos diferentes elementos e campos revolucionários sem dúvida é o caráter da própria revolução – a sua espontaneidade […]. Por isso, essa revolução, provavelmente como todas as outras até agora conhecidas, em certa medida é espontânea […]. Essa espontaneidade da revolução sem dúvida erige muros de proteção contra o entendimento e o acordo nas operações em todo o campo revolucionário.” PPS-Lewica 1906-1918. Materialy i dokumenty, v.1, p.121.

[2] De 5 a 21 de julho de 1906, Józef Pilsudski organizou uma reunião das organizações de combate do PSP em Cracóvia e Zakopane, por temer que a influência dessas estruturas de combate fossem cada vez mais sufocadas em razão da crescente dissensão entre as alas do partido. Depois dessa reunião houve uma série de assaltos, alguns deles armados, a transportes de valores. Assim, no dia 28 de julho de 1906, um carro dos Correios foi roubado próximo de Pruszkóv, resultando em um butim de 172 mil rublos. No dia 15 de agosto de 1906 houve atentados a forças da polícia e da guarda militar em várias cidades do Reino da Polônia, resultando na morte de cerca de 80 pessoas. No dia 18 de agosto de 1906 houve outro atentado em Varsóvia contra o governador-geral Skalon, mas que fracassou.