Foto: Rosa Luxemburgo / Editora Dietz – Fundação Rosa Luxemburgo

A dança de escravos amarela

Foto: Rosa Luxemburgo / Editora Dietz – Fundação Rosa Luxemburgo

O empresariado e a imprensa burguesa se embriagam com os “êxitos exemplares” das organizações amarelas.[1] De fato: que rápida e repentina ascensão nesses últimos tempos!

Se as associações amarelas numericamente mal pesam ao lado dos poderosos sindicatos, ninguém poderá negar que, em termos absolutos, cresceram com uma rapidez extrema.

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Essa ascensão é simplesmente exemplar, e os zelosos agentes do empresariado teriam todos os motivos para encobrir esse crescimento repentino com um silêncio discreto, se fossem capazes de elevar o olhar, dirigido apenas para a “conjuntura” e embrutecido pelas práticas ordinárias cotidianas do capital, para a pré-história de seus métodos atuais.

As tentativas de transformar as vítimas da exploração em instrumentos dispostos a eternizar o próprio sistema de exploração, de fazer os oprimidos externar entusiasmo pela sua própria opressão, são tão antigas quanto as formas da exploração e da dominação de classes. Desde sempre, o poder econômico foi utilizado pelos seus beneficiários não apenas para espremer os trabalhadores fisicamente como um limão em prol de seu próprio enriquecimento, como também para pisoteá-los moralmente, ironizar sua dignidade humana, abusar de sua fragilidade, a fim de mandá-los trabalhar amarrando suas próprias correntes, para fazer essas correntes ressoar com prazer e alegria.

O velho Nettelbeck, que foi tão patriota alemão quanto eficiente traficante de escravos nas águas do Oceano Atlântico, narra uma de suas viagens com a mercadoria negra em 1772:

“Para os escravos homens foram escolhidos alguns marinheiros especialmente divertidos e engraçados, com a missão de cuidar do seu passatempo e deleitá-los com algumas brincadeiras. Jogos, gracejos e atividades ruidosas estendem-se até as três da tarde, quando começam providências para uma segunda refeição. Só que, agora, em vez da cevada, cozinham-se grossas favas, amassadas e temperadas com sal, pimenta e óleo de palma. Imediatamente depois tocam-se os tambores para a dança. Tudo, então, parece eletrizado, o encanto está em cada olhar, todos os corpos se mexem e surgem arrebatamentos, pulos e poses que fazem tudo parecer um grande manicômio desenfreado. As mulheres e meninas são as mais obsessivas com esse prazer, e, para aumentá-lo, até o capitão, os timoneiros e os marinheiros começam a pular com as mais razoáveis entre elas. Afinal, o interesse pessoal manda que a mercadoria negra chegue mais fresca e alegre ao seu destino”.

  Também nos Estado capitalistas atuais, as classes dominantes procedem de acordo com essa simples receita. Quando na Inglaterra foram aprovadas as primeiras leis para restringir o trabalho infantil nas fábricas, várias petições de pais proletários chegaram ao parlamento pedindo insistentemente que não se roubasse aos seus pequenos a benesse de doze horas de trabalho carcerário nas fábricas empesteadas. Afinal, algumas horas livres ao dia que as crianças passassem na rua poderiam ser perigosas para o seu “bem-estar espiritual”.

Foi o chicote do capital que, aqui, transformou pais em capatazes assassinos de seus próprios filhos. Quando nos anos 1880 ainda aconteciam anualmente as famosas coletas de impostos nas miseráveis e esfomeadas aldeias russas, geralmente o procedimento terminava com os próprios camponeses endividados alternadamente atando seus companheiros e chicoteando-os, obedecendo às ordens dos funcionários. Hoje, os sindicatos amarelos desempenham o papel dos escravos alegres dançando loucamente sob os golpes de chicote do capital, assim como os camponeses russos servis castigavam seus próprios irmãos, cumprindo ordens.

Com isso, no entanto, sua breve trajetória na história do atual movimento operário está antecipadamente marcada. A atual luta sindical, que a todo momento precisa passar por imensas provas de força com o capital coligado, que não pode encontrar o seu caminho sem um idealismo elevado e grandes princípios, exige dos seus soldados uma contribuição intelectual muito mais elevada do que antes.

Quem só se filiou por motivos de um egoísmo mesquinho, pela perspectiva de receber apoio na hora do desemprego ou para conseguir aumentos salariais, abandonará a bandeira com mais facilidade, porque nos atuais tempos complicados as vantagens insubstituíveis e as vitórias sindicais geralmente não se expressam em moeda sonante e nem podem ser avaliadas no dia seguinte. Acresce a violência arrebatadora da crise, que entrega ao terror do capitalismo, sem piedade, as vidas mais frágeis, trabalhadores velhos, doentes, que sofrem com pesadas circunstâncias familiares. Assim, tudo o que estava podre, roto e fraco nos sindicatos cai hoje para formar, da escória, um dique de proteção amarelo do capital.

Mas precisamente o caráter súbito de seu crescimento é o parâmetro mais seguro de sua brevidade. Tudo o que se baseia em compreensão intelectual, em convicção interior, na decisão livre da classe trabalhadora amadurece lentamente, avança com tenacidade e cuidado. Cada polegada em conscientização de classe e organização do proletariado moderno foi conquistada em um combate duro e paciente. O rápido inchaço do movimento amarelo é a melhor prova de que seu fundamento não é a convicção interior sustentada, mas que só o estalar do chicote do capital transforma de repente o palco num “baile”, fazendo surgir “arrebatamentos, pulos e poses que fazem tudo parecer um grande manicômio desenfreado”.

Mas a lei histórica da luta de classes não se deixa violentar nem ludibriar por macaquices. Por trás da máscara do palhaço logo aparecerá o rosto pálido da vítima torturada. As diversões dançantes nos navios negreiros não evitaram a incessante eclosão de violentos levantes de escravizados enquanto durou o sistema infame, transformando alguns dos “bailes” negros em cenas de horrores.

O camponês russo chicoteado dos anos 1880 estava, quinze anos depois, na multidão mais densa da revolução, sacudindo os pilares do absolutismo e incendiando a casa do patrão. Às eleições patrióticas de 1907, quando milhares de trabalhadores dependentes, funcionários e pequenos burgueses se viram obrigados pelo terror político a trair os social-democratas[2], seguiram-se com uma lógica férrea as eleições de 1912[3], quando a confiança das massas nos devolveu, com juros sobre juros, em um surto apaixonado, tudo o que havia sido roubado passageiramente por uma pressão brutal.

Da mesma forma, logo se revoltará a dignidade humana pisoteada e a autoestima dos pobres proletários, os quais hoje sofrem o pior abuso que se pode cometer contra um ser humano: a traição na luta de libertação da própria classe. Com a mesma necessidade natural fatal com que, na sociedade capitalista, em poucos anos se seguirá um novo crescimento da vida econômica depois dos tempos de crise, a atual enchente amarela necessariamente virá depois à maré baixa. E quanto mais os êxitos dessas organizações estiverem sendo atualmente inflados pelo empresariado, mais rápido se revelará que o movimento amarelo não passa de uma breve onda de lama passageira, enquanto os sindicatos livres, animados pela luta de classes revolucionária e iluminados pelos ideais do socialismo, representam a chuva constante, o sedimento fértil da História em que germinarão as sementes do futuro.

Sozialdemokratische Korrespondenz (Berlim), nº 17, 10 de fevereiro de 1914

[Tradução: Kristina Michahelles]

*Publicado em Gesammelte Werke 3, Berlim, Dietz, 1984, p.389-92.

[1] Os sindicatos “amarelos”, constituídos depois de 1880, eram organizações de fura-greves formadas ou financiadas pelos patrões com o objetivo de, pela divisão dos trabalhadores, defender seus interesses e não os da classe trabalhadora. A designação “amarela” vem da França, onde os membros dessas organizações portavam a flor da giesta como símbolo partidário.

[2] No governo do chanceler Bernhard von Bülow a campanha para as eleições para o Reichstag, de 25 de janeiro de 1907, foi marcado por uma campanha de agitação da reação contra todas as forças de oposição, principalmente os social-democratas, bem como pela propaganda chauvinista pela continuação da guerra colonial contra os hereros e os hotentotes (ver nota no texto Social-democracia e parlamentarismo). Embora a social-democracia obtivesse o maior número de votos, só obteve 43 mandatos contra os 81 do ano de 1903, por causa da divisão eleitoral obsoleta e das alianças dos partidos burgueses contra a social-democracia.

[3] As eleições do Reichstag se realizaram no dia 12 de janeiro de 1912. A social-democracia conquistou 4,2 milhões de votos contra 3,2 milhões em 1907, aumentando o número de mandatos de 43 para 110 e se tornando a bancada mais forte do parlamento.