Foto: Rosa Luxemburgo / Editora Dietz – Fundação Rosa Luxemburgo

História de meu contemporâneo de Vladimir Korolenko

Foto: Rosa Luxemburgo / Editora Dietz – Fundação Rosa Luxemburgo

“Minha alma de três nacionalidades encontrou finalmente uma pátria – esta era, sobretudo, a literatura russa”, diz Korolenko em suas memórias. A literatura que se tornou para Korolenko pátria, lar, nacionalidade, e da qual ele próprio se tornou um ornamento, é, pela sua história, um fenômeno único.

Durante séculos, atravessando a Idade Média e os tempos modernos até o último terço do século XVIII, reinava na Rússia uma noite escura, uma mudez de cemitério, a barbárie. Nenhuma língua escrita culta, nenhuma métrica própria, nenhuma literatura científica, nenhum comércio de livros, nada de bibliotecas, nada de periódicos, nenhum centro da vida intelectual. A corrente do golfo da Renascença, que banhou todos os países da Europa e fez surgir por encanto um florescente jardim da literatura mundial, as tempestades avassaladoras da Reforma, o hálito incandescente da filosofia do século XVIII – tudo isso deixou a Rússia intacta. O império czarista ainda não tinha nenhum órgão para captar os raios de luz da cultura ocidental, nenhum solo fértil para se apropriar de seus germes. Os parcos monumentos literários daqueles tempos, devido à sua estranha fealdade, dão hoje a impressão de produtos artísticos das Ilhas Salomão ou das Novas Hébridas; entre eles e a arte do Ocidente não há, aparentemente, qualquer parentesco, qualquer ligação íntima.

E então acontece como que um milagre. Depois de algumas tentativas tímidas de se criar um movimento espiritual nacional em fins do século XVIII, as guerras napoleônicas acendem, como um relâmpago, tanto pela profunda humilhação da Rússia, que desperta pela primeira vez a consciência nacional no império czarista, como também mais tarde pelo triunfo da coalisão, que leva a juventude russa para o Ocidente, para Paris, no coração da cultura europeia e a coloca em contato com um mundo novo.

Quase que da noite para o dia floresce uma literatura russa que se ergue, pronta, como Minerva saída da cabeça de Júpiter em sua resplandecente armadura – uma forma artística própria, uma língua, que ombreia coma a italiana em musicalidade, com a inglesa em força viril e com a alemã em nobreza e profundidade, uma riqueza transbordante de talentos, de radiante beleza, de ideias e sentimentos.

A longa noite escura, a paz de cemitério, eram aparência, eram ilusão. Os raios de luz do Ocidente estavam tão-somente escondidos como forças latentes, os germes da cultura esperavam no seio da terra apenas por um momento propício para brotar. De repente, ali estava a literatura russa, como elo inequívoco da literatura europeia, em suas veias circulava o sangue de Dante, Rabelais, Shakespeare, Byron, Lessing, Goethe. Ela recuperou com um salto de leão o atraso de um século e ingressou em igualdade de condições no círculo familiar da literatura mundial.

Um ritmo notável na história da literatura russa, e uma analogia notável com a evolução política recente da Rússia, que decerto será capaz de confundir a cabeça de alguns bravos mestres-escola.

Mas o que é característico dessa literatura russa que brota subitamente é que ela nasceu da oposição ao regime vigente, do espírito combativo. Ela carrega esse sinal visivelmente através de todo o século XIX. Por esse fato se explicam a riqueza e a profundidade de seu conteúdo espiritual, a perfeição e originalidade de sua forma artística e, em especial, sua força social criativa e comovente. Como em nenhum outro tempo e lugar, a literatura russa se tornou, sob o czarismo, uma potência na vida pública, e permaneceu ao longo de todo um século em seu posto, até ser rendida pelo poder material das massas populares, até que a palavra se tornou carne. Foram as belas letras que conquistaram para o despótico Estado semiasiático um lugar na cultura mundial, que romperam a muralha chinesa erguida pelo absolutismo e lançaram uma ponte em direção ao Ocidente, para surgir aqui não apenas como a recebedora, mas também como a doadora, não apenas como discípula mas também como mestra. Basta citar três nomes: Tolstói, Gógol, Dostoievski. 

Em suas memórias Korolenko caracteriza seu pai, um funcionário do Estado no tempo da servidão na Rússia, como típico representante da psicologia das pessoas honestas daquela geração. O pai Korolenko sentia-se responsável tão-somente por suas ações pessoais. O pungente sentimento de responsabilidade pela injustiça social lhe era estranho. “Deus, o czar e a lei” estavam para ele acima de qualquer crítica. Como juiz de comarca ele se sentia chamado apenas a aplicar as leis com a mais meticulosa conscienciosidade. “Que as leis em si pudessem ser inúteis deve ser colocado na conta da responsabilidade do czar diante do Senhor Deus – ele, o juiz, é tão pouco responsável pelas leis quanto pelo fato de que vez por outra um raio caído do céu mata uma criancinha inocente.”  Para a geração dos anos de 1840 e 1850 na Rússia, as condições sociais como um todo pertencem ao âmbito do elementar, inabalável; o meio social passivo sabia se curvar sob o açoite domesticador da autoridade, assim como sob o impacto de um ciclone, na esperança e na expectativa de que o infortúnio passe. “Sim”, diz Korolenko, “aquela era uma visão de mundo monolítica, uma espécie de equilíbrio inabalável das consciências. Suas bases íntimas não eram minadas pela autoanálise, e as pessoas honestas daquela época não conheciam o profundo dissenso íntimo que resulta do sentimento da responsabilidade pessoal por toda a ordem social.” Apenas uma visão de mundo como esta é o verdadeiro fundamento do direito divino do soberano, e enquanto essa visão de mundo se mantém firme e inabalável, é grande o poder do absolutismo.

Seria equivocado considerar a psicologia caracterizada por Korolenko como especificamente russa ou própria apenas do tempo da servidão. Aquele estado de ânimo da sociedade que, livre da pungente autoanálise e do dissenso íntimo, sente as “dependências sancionadas por Deus” como algo elementar e aceita as fatalidades da história como uma espécie de disposição celestial, pela qual somos tão pouco responsáveis quanto pelo fato de que vez por outra o relâmpago mata uma criancinha inocente, é compatível com diversos sistemas políticos e sociais. Ele pode de fato ser encontrado sob condições modernas, ele era em especial característico da psicologia da sociedade alemã durante todo o período da Guerra Mundial.

Na Rússia esse “equilíbrio inabalável das consciências” começou a ruir em vastos círculos da intelectualidade já nos anos de 1860. Korolenko descreve de um modo palpável aquela revolução espiritual da sociedade russa, mostrando como justamente a geração dele superou a psicologia “servil” e foi tomada por uma nova corrente do tempo, cuja nota dominante era o “espírito corrosivo, torturante, mas criador da responsabilidade social”.

Ter despertado esse elevado senso cívico na sociedade russa, ter minado as mais profundas raízes psicológicas do absolutismo, é o mérito da literatura russa. Ela, por sua vez, desde o início de seu percurso, desde o início do século XIX, jamais negou a responsabilidade social, jamais esqueceu o espírito corrosivo, torturante, da crítica social.

Desde que, com Púchkin e Liérmontov, em brilho incomparável, ela desfraldou uma bandeira visível diante da sociedade, seu princípio vital foi a luta contra as trevas, a incultura e a opressão. Ela sacudiu com uma força desesperada os grilhões sociais e políticos, feriu-se com eles e pagou honestamente os custos da luta com o sangue de seu coração.

Em nenhum outro país se pode observar uma brevidade tão evidente da vida dos mais extraordinários representantes da literatura como na Rússia. Dúzias deles morreram ou se arruinaram na flor da idade adulta, quase que ainda na primeira juventude, aos 25, 27 anos ou, quando muito, pouco depois dos 40, na forca, por suicídio direto ou disfarçado de duelo, por loucura, por esgotamento prematuro. Assim, por exemplo, o nobre poeta da liberdade Ryléiev, que, como líder da revolta dos dezembristas foi executado no ano de 1826. Assim também Púchkin e Liérmontov, os criadores geniais da poesia russa – ambos vítimas de duelo – com todo o seu círculo de talentos florescentes. Assim o fundador da crítica literária russa e defensor da filosofia hegeliana na Rússia, Bielínski, como também Dobroliúbov. Assim o extraordinário e delicado poeta Koltsov, do qual um grande número de poemas se integraram à poesia popular russa, como flores de um jardim que retornassem à existência silvestre. Assim o criador da comédia russa Griboiédov, e seu grande sucessor Gógol. Assim novamente, em tempos recentes, os dois brilhantes novelistas Gárchin e Tchékhov. Outros feneceram durante décadas no cárcere, na penitenciária, no exílio, como o fundador do jornalismo russo, Novikov, como o líder dezembrista Bestuchev, como o príncipe Odoiévski, Alexander von Herzen, Dostoiévski, Tchernichévski, Shevchenko, Korolenko.

Turguêniev conta de passagem que em Berlim ele apreciou pela primeira vez com plena consciência o canto da cotovia. Essa observação casual me parece muito característica. O canto da cotovia não é menos belo na Rússia do que na Alemanha. O imenso império russo abriga tantas e tão variadas belezas naturais, que uma alma poética sensível tem a oportunidade de a cada passo se entregar sem reservas ao sentimento de alegria despertado pela natureza. O que impedia a um Turguêniev o deleite imperturbado da beleza natural em sua própria pátria era justamente a dolorosa desarmonia das relações sociais, o constante sentimento opressivo da responsabilidade pelas clamorosas situações sociais e políticas, das quais nunca se podia libertar e que, penetrando no mais fundo do ser, não permitia surgir um único momento de completo abandono de si. Só no estrangeiro, depois de ter deixado para trás as milhares de imagens deprimentes da pátria e se ver diante de situações estranhas, cujo exterior bem ordenado e cultura material sempre impressionavam de modo ingênuo os russos, é que um poeta russo podia se entregar despreocupado e de peito aberto ao sentimento de alegria despertado pela natureza.

Contudo, nada seria mais equivocado do que, em consequência disso, imaginar a literatura russa como arte tendenciosa em sentido bruto, como uma fanfarra tonitruante, como pintura de gente pobre, ou mesmo tomar os poetas russos por revolucionários ou, ao menos, progressistas. Lugares-comuns como “reacionário” ou “progressista”, em si mesmos, ainda significam pouca coisa na arte.

Dostoiévski é, especialmente em seus escritos tardios, um rematado reacionário, um místico febril e inimigo odiento dos socialistas. Suas representações dos revolucionários russos são caricaturas maldosas. As doutrinas místicas de Tolstói exalam no mínimo tendências reacionárias. E, no entanto, as obras de ambos têm sobre nós um efeito abalador, edificante, libertador. Em consequência, seu ponto de partida não é reacionário, suas ideias e sentimentos não são dominados por ódio social, mesquinhez, egoísmo de casta, apego às condições vigentes, e sim, ao contrário, por um generoso amor ao próximo e um profundíssimo sentimento de responsabilidade pela injustiça social. Justamente o reacionário Dostoiévski é o artista defensor dos “humilhados e ofendidos”, como diz o título de uma obra sua. Apenas as conclusões a que ele, assim como Tolstói, cada um à sua maneira, chegam, apenas a saída do labirinto social que pensam encontrar, levam aos descaminhos da mística e da ascese. Mas em artistas verdadeiros a receita social que ele recomenda, é algo secundário; o decisivo são as fontes de sua arte, seu espírito vivificante, e não o objetivo que ele assume conscientemente.

Da mesma maneira podemos encontrar, embora num formato consideravelmente menor, uma tendência na literatura russa que, em lugar das ideias profundas, universais de um Tolstói ou Dostoiévski, propagam ideais mais modestos: cultura material, progresso moderno, operosidade burguesa. Entre os mais talentosos representantes dessa tendência podemos mencionar, da geração mais velha, Gontchárov, da mais jovem, Tchékhov. Pois este último, por espírito de oposição à tendência moralizante e ascética de Tolstói, cunhou em sua época a frase característica: Vapor e eletricidade contêm mais amor ao próximo do que a castidade sexual e o vegetarianismo. Mas também esta tendência “portadora de cultura” um tanto sóbria, por sua própria natureza, não transpira na Rússia – como em pintores do juste milieu na França e na Alemanha – um filistinismo e uma trivialidade saturadas, e sim um anseio juvenil, instigante, por cultura, dignidade pessoal e iniciativa. Em especial Gontchárov empreendeu em seu Oblómov um retrato da indolência humana que merece um lugar na galeria dos grandes tipos humanos de significação universal.

Há ainda na literatura russa, por fim, também os representantes da decadência. Um dos mais brilhantes talentos da geração de Górki deve-se contar entre eles: Leonid Andrêiev, cuja arte exala uma aterrorizante e pútrida atmosfera tumular, sob cujo hálito todo o ímpeto vital emurchece. Mas as raízes e a essência dessa decadência russa são diametralmente opostas às de um Baudelaire ou de um d’Annunzio. Nestes há, no fundo, apenas uma saturação da cultura moderna, um egoísmo altamente refinado na expressão e muito robusto em seu cerne que não encontra mais nenhuma satisfação na existência normal e, por isso, apela para estimulantes venenosos. Em Andrêiev o desespero brota de uma alma subjugada pela dor sob o ataque de relações sociais opressivas. Como os melhores da literatura russa, Andrêiev lançou um olhar em profundidade sobre os variadíssimos sofrimentos humanos. Ele vivenciou a guerra japonesa, o primeiro período revolucionário, os horrores da contrarrevolução de 1907 a 1911 e as descreveu em retratos comoventes como O riso vermelho, A história dos sete enforcados e outros mais. Agora acontece com ele o mesmo que com o seu Lázaro, que, retornando da orla do reino das sombras, não pode mais superar o hálito do túmulo e vagueia entre os vivos como “um resto meio comido pela morte”. A origem dessa decadência é tipicamente russa: é excesso de empatia social, sob a qual a capacidade de ação e resistência do indivíduo desmorona.

É justamente essa empatia social que determina a singularidade e a grandeza artística da literatura russa. Só pode comover e chocar quem está, ele próprio, comovido e chocado. Talento e gênio são, é verdade, em cada caso particular um “dom de Deus”. Mas mesmo o maior dos talentos não é por si só suficiente para produzir um efeito duradouro. Quem negaria o talento, ou mesmo o gênio do Abbate Monti, que em tercinas dantescas cantou ora o assassinato do emissário da Revolução Francesa pela ralé romana, ora a própria vitória da Revolução, ora os austríacos, ora o Diretório, ora a retirada diante dos russos, o louco Suvórov, e depois disso Napoleão e então o Imperador Francisco, a cada momento soluçando no ouvido do vencedor da hora com voz de rouxinol? Quem colocaria em dúvida o grande talento de um Saint-Beuve, o criador do ensaio literário, que com sua pena brilhante prestou grandes serviços sucessivamente em qualquer campo político da França, para queimar hoje o que adorava ontem, e vice-versa.

Para uma influência duradoura, para a verdadeira educação da sociedade, é preciso mais do que talento: personalidade poética, caráter, individualidade, ancorados no solo rochoso de uma visão de mundo firme e coerente. É justamente a visão de mundo, a consciência social finamente vibrante da literatura russa, que lhe aguça tão extraordinariamente o olhar para a psicologia das diferentes personagens, tipos, situações sociais do ser humano, é a empatia dolorosamente trêmula que lhe  proporciona as cores de uma magnificência tão fulgurante com as quais ela pinta seus quadros, é a busca incessante, a meditação sobre os enigmas sociais que a torna capaz de enxergar com olhos artísticos e apreender em obras poderosas a estrutura social em toda a sua grandeza e em toda a sua íntima complexidade.

Homicídios e crimes ocorrem todos os dias em todos os lugares. “O auxiliar de cabeleireiro X assassinou e roubou a aposentada J. O tribunal de justiça Z. o condenou à morte.” – qualquer um pode ler isso em seu jornal matutino, percorrer essas linhas com olhos indiferentes e continuar depois a procurar as notícias das pistas de corrida e do novo programa semanal dos teatros. Quem, a não ser a polícia, os promotores e os estatísticos se interessam por casos de assassinato? No máximo o romance policial e o drama cinematográfico.

Dostoiévski se abala até as profundezas da alma com o fato de que um ser humano pode assassinar outro ser humano, que isso pode acontecer todos os dias ao nosso lado, no meio de nossa “civilização”, do outro lado da parede de nossa paz doméstica burguesa. Assim como para Hamlet todos os laços de humanidade foram desamarrados pelo crime de sua mãe e o mundo saiu dos eixos, também para Dostoievski, diante do fato de que um ser humano pode assassinar outro ser humano. Ele não encontra paz, ele sente a responsabilidade que esse horror coloca sobre ele como sobre cada um de nós. Ele precisa esclarecer para si mesmo a psique do assassino, investigar até a prega mais recôndita do coração suas dores, seus sofrimentos. Ele próprio experimentou até o fim todas essas torturas e foi ofuscado por esse terrível conhecimento: o assassino é a vítima mais infeliz da sociedade. Então ele soa o alarme com uma voz terrível, ele nos desperta da estúpida indiferença do egoísmo civilizado, que entrega o assassino ao comissário de polícia, ao promotor, ao verdugo ou à penitenciária, e com isso se ilude pensando tê-lo liquidado. Dostoiévski nos obriga a compartilhar todos os suplícios do assassino, e por fim nos atira ao chão, aniquilados: quem uma vez vivenciou seu Raskólnikov, o interrogatório de Dimitri Karamázov na noite seguinte ao assassinato de seu pai, as Recordações da casa dos mortos, jamais poderá se sentir novamente em casa na aconchegante concha do filistinismo e do egoísmo autocomplacente. Os romances de Dostoiévski são a mais terrível acusação contra a sociedade burguesa, que ele lhe lança em rosto: o verdadeiro assassino, o assassino da alma humana é você!

Ninguém sabe se vingar da sociedade pelos crimes que ela comete contra o indivíduo, submetê-la à tortura de um modo tão refinado como Dostoiévski – esse é o seu talento específico. Mas todos os espíritos proeminentes da literatura russa sentem da mesma maneira o assassinato como uma acusação contra as condições vigentes, como um crime contra o assassino enquanto ser humano, pelo qual somos todos – todos os indivíduos – responsáveis. Por isso os maiores talentos retornam sempre, como que fascinados, ao tema do grande ato criminoso, para o colocar diante de nossos olhos em sublimes obras literárias, para nos despertar da tranquilidade inconsciente: Tolstói em O poder das trevas, e na Ressurreição, Gorki no Asilo noturno, e em Os três homens, Korolenko no conto O bosque murmura e em seu maravilhoso Assassino siberiano.

A prostituição é um fenômeno tão pouco específico da Rússia quanto a tuberculose; é antes a mais internacional das instituições da vida social. Mas, apesar de desempenhar um papel quase dominante na vida moderna, ela não é reconhecida oficialmente, no sentido da mentira convencional, como componente normal da sociedade de hoje, e sim como algo que se localiza fora de seus pilares, como sua escória. A literatura russa não trata a prostituta no estilo picante de um romance de boudoir ou com a sentimentalidade chorosa dos livros tendenciosos, nem ainda como uma fera misteriosa e selvagem, um “Espírito da terra”. Nenhuma literatura do mundo contém descrições de um realismo tão cruel quanto os quadro grandioso da orgia em Os Irmãos Karamázov ou em Ressurreição, de Tolstói. O artista russo, contudo, não vê na prostituta, apesar de tudo, a “decaída”, e sim um ser humano cuja psique, sofrimentos e lutas íntimas reivindicam sua empatia. Ele enobrece a prostituta e lhe dá uma reparação pelos crimes que a sociedade cometeu contra ela, fazendo-a rivalizar pelo coração do homem como os tipos mais belos e puros da feminilidade, ele lhe coroa a cabeça com rosas e a eleva, como Mahadö à dançarina, do purgatório de sua corrupção e de seus tormentos espirituais para as alturas da pureza moral e do heroísmo feminino.

Mas não apenas esses crassos fenômenos excepcionais sobre o pano de fundo da vida cotidiana, também essa própria vida, o homem mediano com sua miséria, despertam um profundo interesse ao olhar socialmente aguçado da literatura russa. “A felicidade humana”, diz Korolenko em um de seus contos, “a felicidade humana tem para a alma algo de salutar e revigorante. E, sabe, eu sempre penso de mim para comigo que os seres humanos na verdade têm a obrigação de ser felizes.” Em outro conto, intitulado Um paradoxo ele põe na boca de um aleijado que nasceu sem braços as seguintes palavras: “O ser humano foi criado para a felicidade como as aves para voar.” Na boca do miserável deformado essa máxima é um óbvio “paradoxo”. Para milhares e milhões de seres humanos, porém, não são os defeitos físicos eventuais, e sim as relações sociais que fazem a “vocação para a felicidade” dos seres humanos parecer paradoxais.

A observação de Korolenko contém, de fato, uma importante parcela de higiene social: a felicidade torna os seres humanos espiritualmente saudáveis e puros, como a luz do sol sobre um lago aberto desinfeta a água do modo mais eficaz. Com isso também se diz que em relações sociais anormais – e anormais são, no fundo, todas as relações baseadas em desigualdade social – as mais variadas espécies de aleijão espiritual não podem deixar de se tornar fenômenos massivos. Opressão, arbítrio, injustiça, pobreza, dependência e também uma divisão do trabalho que conduz à especialização unilateral moldam espiritualmente o ser humano de uma determinada maneira, e isso em ambos os polos: o opressor tanto quanto o oprimido, o tirano tanto quanto o submisso, o fanfarrão tanto quanto o parasita, o arrivista inescrupuloso tanto quanto o malandro indolente, o pedante tanto quanto o palhaço são na mesma medida produtos e vítimas de suas condições.

Justamente essas anormalidades psicológicas excepcionais, o crescimento torto, por assim dizer, da alma humana sob a ação de relações sociais cotidianas ganharam em Gógol, Dostoiévski, Gontchárov, Saltikov, Uspenski, Tchékhov e outros descrições de estatura balzaquiana. A tragédia da trivialidade de um ser humano rotineiro inteiramente comum, como nos é dado em A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, talvez não encontre pares na literatura mundial.

Mas especialmente para a categoria daquele pequenos gatunos que, sem uma profissão determinada, imprestáveis para um trabalho remunerado regular, atirados de um lado para o outro entre o parasitismo e conflitos eventuais com o código penal, constituem o detrito da sociedade burguesa e no Ocidente são expulsos por essa sociedade já na soleira da porta por meio da sucinta tabuleta: “Proibido mendigar, mercadejar, tocar música!”, para essa categoria à qual pertence ex-funcionário Popkov neste livro que se vai ler a literatura russa tem desde sempre um vívido interesse artístico e um sorriso benevolente de compreensão. Com a calorosa bondade de Dickens, mas sem sua boa sentimentalidade burguesa, antes com um realismo generoso, os Turguêniev, Uspenski, Korolenko, Górki simplesmente incluem na sociedade humana, com igualdade de direitos, todos esses “náufragos”, bem como os criminosos e as prostitutas, e é justamente graças a essa magnânima compreensão que alcançam criações do maior efeito artístico.

O mundo infantil é representado na literatura russa com especial ternura e delicadeza, como em Guerra e paz e Anna Kariênina, de Tolstói, Os irmãos Karamázov, de Dostoiéviski, Oblómov, de Gontchárov, nos contos Em má companhia e À noite, de Korolenko, em Os três, de Górki. Há um romance de Zola, Page d’amor [Página de amor], do ciclo Os Rougon-Macquart, no qual o drama espiritual de uma criança negligenciada está no centro da trama e é descrito de modo comovente. Mas aqui a menina doente de nascença, hipersensível, que, ferida mortalmente no coração por uma breve ebriedade amorosa egoísta da mãe, resseca como um broto que acabara de se abrir, não passa de uma “prova” no romance experimental de Zola, um manequim por meio do qual a tese da hereditariedade é apresentada.

Para os russos a criança e sua psique são um objeto autônomo, integral, do interesse artístico, um indivíduo tão humano quanto os adultos, apenas mais natural, não corrompido e, em especial, indefeso diante das influências sociais. A quem ofende um desses pequenos seria melhor pendurar uma pedra de moinho no pescoço, etc. Mas a sociedade atual “ofende” milhões desses pequenos, roubando-lhes o que de mais precioso e insubstituível uma pessoa pode chamar de seu: uma juventude feliz, despreocupada, harmônica.

Como vítima das relações sociais, o mundo infantil, com suas tristezas e alegrias, está muito próximo do coração do artista russo, não é tratado por ele naquele tom falso e jocoso que a maioria dos adultos considera necessária para se descer ao nível do mundo das crianças, e sim com um tom sincero e sério de camaradagem, sem sinal da presunção infundada dos adultos, e mesmo com certa timidez íntima e respeito pela humanidade intacta que repousa em toda alma de criança, como também pelo caminho do Gólgota da vida, que se abre diante de qualquer criança.

Um sintoma importante da vida espiritual de um povo civilizado é o lugar reservado à sátira em sua literatura. A Alemanha e a Inglaterra são, sob esse ponto de vista, polos opostos na literatura europeia. Estirando o fio de Hutten até Heine, deveríamos incluir Grimmelshausen entre os satíricos, o que só pode acontecer sob certas condições. E mesmo assim os elos intermediários nos oferecem a imagem de um assustador declínio no curso de três séculos. Do genial e fantástico Fischart, com sua natureza exuberante, em que sentimos nitidamente o hálito da Renascença, ao sóbrio e barroco Moscheroch; e de Moscheroch que, de qualquer modo, sempre puxou insolentemente as barbas dos poderosos, ao pequeno filisteu Rabener – que decadência! Rabener, que esbraveja contra a “insolência” daquela gente que tem a petulância de expor ao ridículo os membros da realeza, do clero e das “classes superiores”, quando um bom satírico alemão deveria em primeiro lugar aprender a ser “um bom súdito”, pôs também a nu o ponto mortal da sátira alemã. Na literatura do pós-março, a sátira em alto estilo é quase inexistente. Na Inglaterra, o gênero satírico conheceu um florescimento sem igual desde o início do século XVIII. A literatura inglesa não apenas produziu uma série de mestres, como Mandeville, Swift, Sterne, Sir Philip Francis, Byron, Dickens, um grupo na qual Shakespeare merece sem dúvida o primeiro lugar isolado pela criação da figura de Falstaff: a sátira se transformou aqui, de privilégio dos heróis do espírito, em um bem comum, ela foi, por assim dizer, nacionalizada. Em panfletos políticos, libelos, discursos parlamentares, artigos de jornal, ela brilha desde sempre, tanto quanto na arte literária. Ela se tornou de tal modo o pão de cada dia, a atmosfera normal dos ingleses, que vez por outra podemos encontrar, por exemplo, nos contos de uma Croker, destinados às meninas da classe média alta, descrições tão ácidas da aristocracia inglesa quanto em Wilde, Shaw ou Galsworthy.

Frequentemente é apontada como origem e explicação dessa florescência do gênero satírico a antiga liberdade política inglesa. Um olhar sobre a literatura russa, que nesse sentido pode ser colocada ao lado da inglesa, demonstra que ela não depende tanto da constituição de um país quanto do espírito de sua literatura, não tanto das instituições quanto das convicções dos círculos dominantes da sociedade.

Na Rússia, desde o surgimento da literatura moderna, a sátira se apoderou de todos os seus domínios, e em todos eles produziu coisas extraordinárias. O poema Ievguêni Oniêguin, de Púchkin, as novelas e epigramas de Liérmontov, as fábulas de Krylov, as comédias de Ostróvski e Górki, os poemas de Nekrássov – sua epopeia satírica Quem vive livre e feliz na Rússia  dá, mesmo na difícil tradução alemã uma ideia do delicioso frescor e colorido de suas criações – são também muitas obras primas, cada uma à sua maneira. Por fim, a sátira russa produziu em Saltikov-Schedrin um gênio, que inventou uma forma literária singular, uma linguagem própria, intraduzível, para fustigar ferozmente o absolutismo e a burocracia, e influenciou de um modo profundo a evolução espiritual da sociedade.

Assim a literatura russa une a um pathos altamente moral a compreensão de toda a escala dos sentimentos humanos, assim ela criou no interior de uma grande prisão, da pobreza material do czarismo, um reino próprio de liberdade espiritual e cultura exuberante, no qual podemos respirar e compartilhar os interesses e as correntes espirituais do mundo cultural. Assim ela logrou também constituir um poder social na Rússia, educar uma geração após a outra e se tornar para os melhores, como Korolenko, uma verdadeira pátria.

II

Korolenko é uma natureza eminentemente poética. Ao redor de seu berço fermentam as densas névoas da superstição. Não da corrupta superstição da moderna decadência citadina, inextirpável, que assombra Berlim, por exemplo, sob a forma de espiritismo, cartomancia e curandeirismo, e sim da ingênua superstição da poesia popular, que é tão pura e exala um perfume picante como o vento livre das estepes ucranianas e as milhões de íris, aquileias e sálvias que lá vicejam na relva alta como um homem. Na atmosfera assustadora dos aposentos da criadagem e do quarto das crianças da casa paterna de Korolenko sente-se claramente que seu berço se encontrava em estreita vizinhança da terra mágica de Gógol, com seus gnomos, bruxas e sua assombração pagã de natal.

Também Harny Lug nos lembra vivamente o mundo de Gógol, os bobocas de Mirgorod Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch, apenas com um forte componente polonês, pois a Volínia é também uma região vizinha da Lituânia, a pátria do antigo fidalgo caipira polonês e de seu imortal bardo Adam Mickiewicz.

Pois por suas origens Korolenko é polonês, ucraniano e russo ao mesmo tempo, e ainda na infância ele teve de resistir ao assalto dos três “nacionalismos”, cada um dos quais lhe impunha “odiar e perseguir fosse lá quem fosse”. Logo cedo, todas essas tentações fracassaram diante da sadia humanidade do garoto. As tradições polonesas o tocaram apenas como o último sopro moribundo de um passado historicamente superado. O nacionalismo ucraniano, com sua mescla de bufonaria tola e romantismo reacionário, causava repulsa ao seu senso de franqueza. E os métodos brutais da política oficial de russificação da oprimida Polônia e dos greco-católicos da Ucrânia eram uma poderosa advertência contra o chauvinismo russo para ele, o garoto delicado que se sempre se sentia instintivamente atraído pelos pobres e oprimidos, e não pelos fortes e triunfantes. Ele procurou se refugiar no humanismo da contenda entre as três nacionalidades, cujo campo de batalha era a sua pátria volínia.

Órfão de pai aos 17 anos de idade e dependendo materialmente apenas de si mesmo, ele vai para Petersburgo a fim de se lançar no torvelinho da vida universitária e da fermentação política. Depois de três anos de estudos na escola politécnica, transfere-se para a Academia Agronômica de Moscou. Contudo, depois de apenas dois anos, seus planos de vida são atravessados pelo “poder superior”, como aconteceu com muitos de sua geração. Korolenko é preso como participante e porta-voz de um protesto estudantil, expulso da academia e mandado para o distrito de Vologda, no norte da Rússia europeia, e posteriormente para uma residência em Kronstadt sob vigilância da polícia.

Anos depois ele retorna a Petersburgo para empreender novos planos de vida, aprende ali o ofício de sapateiro, a fim de se aproximar, seguindo seus ideais, das classes trabalhadoras populares e, ao mesmo tempo, favorecer um desenvolvimento multifacetado de sua própria individualidade, mas no ano de 1879 é preso novamente, e dessa vez enviado para o distrito de Viatka, bem mais ao nordeste, num lugarejo totalmente isolado do mundo.

Também a isso Korolenko se adapta com bom humor. Ele procura se instalar da melhor maneira possível no novo local de exílio e exerce com afinco seu ofício recém-aprendido, a fim de garantir seu sustento. Mas não lhe seria dado gozar por muito tempo da tranquilidade. De repente, sem motivos aparentes, foi mandado para a Sibéria Ocidental, e de lá para Perm, e de Perm para o extremo oriental da Sibéria.

Mas nem aqui sua peregrinação teria fim. No ano de 1881, depois do atentado contra Alexandre II, subiu ao trono o novo czar, Alexandre III. Korolenko, que nesse meio tempo se tornara funcionário da ferrovia, prestou, juntamente com os demais funcionários, o costumeiro juramento ao novo governo. Mas isso não foi considerado suficiente. Ele teria também de prestar seu juramento de fidelidade como indivíduo, como “exilado político”. Korolenko – como todos os outros exilados – recusou submeter-se a esse abuso e, por isso, foi mandado para o deserto gelado do distrito de Iakutsk.

Esse foi sem dúvida um “protesto vazio”, por menos demonstrativa que fosse a intenção de Korolenko. Se um exilado solitário em qualquer parte da taiga siberiana ou nas proximidades do círculo polar prestava ou não seu juramento de submissão ao governo czarista, isso não mudava absolutamente nada nas condições vigentes do ponto de vista material e imediato. Mas na Rússia czarista era costume fazer tais protestos vazios. Aliás, não apenas na Rússia. Pois o que foi o obstinado eppur si muove (no entanto, está se movendo) de Galileu senão um protesto vazio da mesma espécie, sem nenhum outro efeito prático que não a vingança da Santa Inquisição contra o homem encarcerado e torturado? Contudo, para milhares de pessoas que têm apenas uma ideia das mais nebulosas da teoria copernicana, o nome de Galileu estará para sempre ligado àquele belo gesto, não tendo a menor importância o fato de que sequer foi feito de fato. São justamente as lendas com as quais a humanidade gosta de enfeitar seus heróis que constituem uma prova, assim como as “demonstrações vazias”, apesar de sua imprevisível utilidade material, são para ela uma parcela indispensável de todo o capital espiritual.

Pela sua recusa em prestar juramento, Korolenko teve de penar durante quatro anos no território de nômades semisselvagens às margens do Aldan, um afluente do Lena, no meio da selva siberiana, em temperaturas que no inverno chegavam aos 40 ou 45 graus negativos. Mas nem todas as privações, a solidão, o cenário árido da taiga, a região miserável, a distância do mundo da cultura, puderam abalar em nada a elasticidade espiritual e o temperamento solar de Korolenko. Ele participa dedicadamente da vida paupérrima e dos interesses do povo de Iakutsk, cultiva a terra com afinco, sega o feno e ordenha vacas; no inverno, faz sapatos para os nativos, e também quadros sacros. Sobre esse período de “sepultamento em vida”, como George Kennan chamou a existência dos exilados de Iakutsk, Korolenko fará mais tarde um relato desprovido de lamentações em seus esboços, livre de qualquer amargura e mesmo bem-humorado, em quadros da mais delicada beleza poética. Entrementes, seu talento poético amadurece, e ele reúne um rico cabedal de impressões da natureza e de observações psicológicas.

Em 1885, retornado enfim do exílio que lhe custou, com pequenas interrupções, quase dez anos de sua vida, ele publicou um pequeno conto que de um uma hora para a outra o colocou entre os mestres da literatura russa – O sonho de Makar. Na atmosfera plúmbea dos anos de 1880, esse primeiro fruto maduro do jovem talento teve o efeito do primeiro canto da cotovia em um dia cinzento de fevereiro. Em rápida sequência vieram se juntar a ele novos esboços e contos: Anotações de um turista siberiano, O bosque murmureja, Yom Kippur, O rio espumeja e muitos outros. Todos eles exibem os mesmos traços característicos da obra de Korolenko: maravilhosas pinturas de paisagens e atmosfera, naturalidade amável e fresca, cálido interesse pelos “humilhados e deserdados”.

Essa forte nota social nos escritos de Korolenko não tem em si, contudo, nada de didático, polêmico, apostólico, como por exemplo em Tolstói. Ela é simplesmente uma parte de seu amor pela vida, de sua natureza bondosa, seu temperamento solar. Com toda sua generosidade e a magnanimidade de suas opiniões, com toda sua repulsa pelo chauvinismo, Korolenko é integralmente um poeta russo, talvez o mais nacional entre os grandes prosadores da literatura russa. Ele não ama apenas a sua terra, ele é apaixonado pela Rússia como um adolescente, apaixonado pela sua natureza, pelo encanto íntimo de cada recanto do gigantesco império, por cada riozinho sonolento e cada vale silencioso cercado pela floresta, apaixonado pelo povo simples, por seus tipos, sua religiosidade ingênua, seu humor primitivo e sua profundidade meditativa. Não é na cidade, num confortável vagão de trem, na correria e no tumulto da moderna vida cultural que ele se sente em seu elemento, e sim numa estrada vicinal. Caminhar sempre para a frente, de mochila e cajado de peregrino feito por ele mesmo, “coberto por um leve suor de peregrino”, entregar-se ao acaso, ora seguir uma trupe de pios peregrinos até em busca da miraculosa imagem sacra, ora bater papo com pescadores ao redor de um fogo noturno, ora ouvir a conversa de uma multidão de camponeses, madeireiros, soldados e mendigos num pequeno barco a vapor avariado que singra as águas sonolento – essa é a forma de vida que mais o agrada. E nessas peregrinações ele não se contenta em ser apenas um observador, como Turguêniev, o refinado e bem cuidado aristocrata. Estabelecer contato com a gente do povo depois de umas poucas palavras, encontrar o tom adequado a ela, submergir na multidão, não representa esforço algum para Korolenko

Dessa maneira, ele vagou por quase toda a Rússia. Aqui, a cada passo, aspirou a magia da natureza, a poesia ingênua da primitividade, que também em Gógol fazia aflorar um sorriso. Aqui ele observou cheio de encantamento a fleuma elementar e fatalista do povo russo, que em tempos de paz parece inabalável e inesgotável, mas em momentos de tempestade se transforma em ânimo heroico, grandeza e energia férrea – assim como aquele suave rio de seu conto, cujas águas, em condições normais, fluem num murmúrio, suaves e humildes, mas durante uma inundação se erguem numa torrente orgulhosa, impaciente, de uma grandiosidade ameaçadora. Aqui, no contato imediato e espontâneo com a natureza e o povo simples, Korolenko encheu seu diário com impressões frescas e coloridas que, quase intactas, ainda cobertas de cintilantes gotas de orvalho, envoltas no cheiro da terra, forneceram a matéria de seus esboços e contos.

Um produto singular da pena de Korolenko é O músico cego. Na aparência um experimento puramente psicológico, a obra não trata, se quisermos ser rigorosos, de nenhum tema artístico. Deficiência congênita pode, é verdade, ser a fonte de muitos conflitos na vida de um ser humano, mas está, ela própria, além da vontade e da ação humanas, além de culpa e expiação, a não ser nos casos em que, como consequência da hereditariedade, faz da culpa dos pais a maldição dos filhos. Por isso, deficiências físicas são tratadas de maneira apensa episódica, tanto na literatura quanto nas artes plásticas, seja com intenção satírica, a fim de tornar ainda mais desprezível a fealdade espiritual de uma personagem, como no caso de Tersites em Homero (e também, por exemplo, dos juízes gagos nas comédias de Molière e Beaumarchais), ou com um componente humorístico benevolente, como nos pequenos quadros de gênero da Renascença flamenga, por exemplo, nos esboços de figuras aleijadas de Cornelis Dussart.

Em Korolenko é diferente: o drama psíquico do cego congênito, que é atormentado por um irresistível desejo de luz, sem jamais poder satisfazê-lo, está aqui no centro dos interesses, e a solução que Korolenko lhe dá leva inesperadamente de volta ao tom básico de sua arte, bem como de toda a literatura russa em si. Seu músico cego vivencia um renascimento espiritual, ele se torna espiritualmente “vidente” ao sair do egoísmo de seu próprio sofrimento irremediável para se tornar o porta-voz da angústia física e psíquica de todos os cegos. O clímax de seu estudo constitui o primeiro concerto público beneficente do cego, que inesperadamente começa a fazer variações da conhecida melodia do cantador de feira cego na Rússia em seu instrumento e a torna o tema de um improviso que faz o público ouvinte estremecer num acesso de ardente compaixão. O elemento social, a solidariedade com o sofrimento das massas é aqui o doador da salvação e da luz tanto para o indivíduo quanto para a coletividade.

III

O caráter polêmico da literatura russa evita que ela trace uma linha divisória rigorosa entre as belas-letras e as produções publicísticas, como acontece hoje no Ocidente. Na Rússia, com frequência uma deságua na outra, como também na Alemanha no tempo em que Lessing indicava o caminho à burguesia e a crítica teatral, o drama, a polêmica filosófico-teológica, o ensaio de estética lhe serviam alternativamente para abrir o caminho para uma nova visão de mundo. Porém, o trágico no destino de Lessing foi que ele permaneceu a vida toda um solitário e incompreendido, enquanto na Rússia uma longa série de talentos excepcionais cultivaram os diversos domínios da literatura alternativamente como pioneiros de uma visão de mundo livre. Alexander von Herzen aliou a um renomado talento de romancista uma pena jornalística genial e soube, nos anos de 1850 e 1860, escrevendo do estrangeiro, despertar com seu Sino toda a Rússia pensante. O velho hegeliano Tchernichévski se agitava com o mesmo vigor e combatividade nos âmbitos da polêmica publicista, do tratado filosófico, do ensaio de economia política e do romance de tendência. A crítica literária como um meio excepcional de combater a reação em todos os seus refúgios e de propagar sistematicamente uma ideologia progressista encontrou depois de Bielínski e Dobroliúbov um brilhante representante em Mikhailóvski, que durante décadas dominou a opinião pública e exerceu uma grande influência em especial sobre a evolução intelectual de Korolenko. Tolstói se serviu, em prol de suas ideias, além do romance, do conto e do drama, também do conto-de-fadas moralizante e do panfleto polêmico. Korolenko, por sua vez, trocava a todo momento o pincel e a paleta do artista pela espada do jornalista, a fim de tomar posição acerca de questões atuais da vida social e intervir imediatamente no combate do momento.

Entre as instituições perenes da velha Rússia czarista estavam a fome crônica e o vício da bebida, o analfabetismo e o déficit dos proventos. Como fruto da “reforma camponesa” levada a cabo de modo inusitado quando se aboliu a servidão, da carga opressiva de impostos e do extremo atraso das técnicas agrícolas, as quebras de safra se abatiam sobre os camponeses a cada dois anos durante todo o decênio de 1880. O ano de 1891 coroou o processo: em 20 províncias uma seca extraordinária teve como consequência uma perda total da safra e uma carestia de dimensões verdadeiramente bíblicas.

Nas enquetes oficiais sobre a quebra de safra encontrou-se entre mais de setecentas respostas das mais diversas regiões a seguinte descrição pela pena de um simples sacerdote de uma das províncias centrais:

“Faz já três anos que a quebra de safra está à espreita, uma calamidade atrás da outra desaba sobre o camponês. Temos a praga das lagartas, os gafanhotos devoram os grãos, vermes os roem, besouros acabam com o resto. A colheita foi destruída no campo, a semeadura secou na terra, os depósitos estão vazios, o pão acabou. Animais gemem e caem por terra, rebanhos de gado bovino se arrastam extenuados, ovelhas fenecem, não há alimento para elas… Milhões de árvores, dez mil casas no campo se tornaram presa das chamas. Uma muralha de fogo e colunas de fumaça nos cercava… Como se lê no profeta Sofonias: Farei desaparecer tudo da face da terra, diz o senhor, homens, bois e animais selvagens, pássaros e peixes. Quantos espécimes do reino das aves não desapareceram nos incêndios florestais, quantos peixes não morreram nas águas contaminadas!… O alce fugiu de nossas florestas, a fuinha desapareceu, o esquilo morreu. O céu se fechou e se tornou como que de bronze, dele já não cai o orvalho, apenas a seca e o fogo. Ressecadas estão as árvores frutíferas, a relva e as flores, nenhuma framboesa amadurece mais, nenhum mirtilo, nenhuma amora, nenhuma airela vermelha em parte alguma, pântanos e pauis foram devastados pelo fogo… Onde estais, fresco verde da floresta, onde, ó ar delicioso, onde, ó perfume balsâmico dos pinheiros, que trazíeis a cura aos doentes. Tudo se acabou!”

O autor do escrito, como experiente “súdito” russo, pede ao final encarecidamente que “não o responsabilizem criminalmente pela descrição acima.”

O temor do bom padre de aldeia não era sem fundamento: uma poderosa fronda aristocrática declarou – por mais incrível que isso possa soar – que toda a carestia era uma invenção malévola de “agitadores”, e que qualquer socorro era desnecessário.

Então, em todas as frentes eclodiu a luta entre o campo reacionário e a intelectualidade progressista. A sociedade russa entrou em ebulição, a literatura soou o alarme. Uma operação de socorro de grandes dimensões foi iniciada. Médicos, escritores, estudantes de ambos os sexos, professores, mulheres da intelectualidade acorreram às centenas para o campo, a fim de levar alimento para o povo, distribuir sementes, organizar a compra de grãos a preços módicos, cuidar dos doentes. Mas o problema não era simples. A grande desordem e a má administração profundamente enraizada do país governado por burocratas e militares, no qual cada província e cada distrito era em si uma comarca de sátrapas, vieram a luz. Rivalidades, disputas por competências e oposições entre as administrações das províncias e dos distritos, entre órgãos governamentais e a autonomia rural, entre escrivães de aldeia e a massa dos camponeses, a que se vieram juntar o caos das concepções, expectativas e exigências dos próprios camponeses, sua desconfiança em relação aos homens da cidade, a oposição entre a rica burguesia aldeã e a massa miseranda – tudo isso ergueu de repente milhares de barreiras e obstáculos à intelectualidade e sua boa vontade, levando-a ao desespero. Todos os incontáveis abusos e opressões locais, aos quais os camponeses até então, em tempos normais se submetiam diariamente em silêncio, todos os absurdos e contradições do burocratismo apareceram à clara luz do dia, e a luta contra a fome, que era em si uma simples ação de beneficência, se transformou por si mesma em uma luta contra o regime social e político do absolutismo.

Korolenko, como Tolstói, se colocou à frente da intelectualidade progressista e se dedicou à causa não somente com sua pena, mas também com toda a sua personalidade. Na primavera de 1892 ele se dirigiu a um distrito da província de Nijni-Novgorod, justamente no ninho de vespas da fronda aristocrática, a fim de organizar nas aldeias em situação calamitosa a distribuição de alimentos para o povo. Desconhecendo por completo aquele meio, logo se familiarizou com todas as particularidades e começou uma luta obstinada contra as milhares de resistências que se colocaram em seu caminho. Durante quatro meses permaneceu no distrito, com frequência peregrinando de aldeia em aldeia, de repartição em repartição, escrevendo em seu diário durante as noites em casas de camponeses à luz turva de um candeeiro fuliginoso e, ao mesmo tempo, mantendo em ritmo alucinante um combate vigoroso e alegre nos jornais da capital contra a reação. Seu diário, no qual nos apresenta todo o Gólgota da aldeia russa – crianças mendigando, mães emudecidas e como que petrificadas, anciães chorando, doença e desespero, um painel aterrorizante – se tornou um memorial imperecível do regime czarista.

À fome seguiu bem de perto o segundo cavaleiro do apocalipse: a peste. A cólera veio da Pérsia em 1893 através das colônias do Volga, subindo o rio, e soprou seu hálito mortífero sobre as aldeias apáticas, extenuadas pela fome. A conduta dos órgãos do governo czarista diante desse novo inimigo parece uma anedota, mas era a amarga realidade: o governador de Baku fugiu da peste para as montanhas, o de Saratov se escondeu num barco a vapor assim que começaram as agitações populares. O de Astracã acertou o alvo: mandou barcos em patrulha para o Kaspi (o mar Cáspio), que impediram o acesso ao Volga a todos os veículos vindos da Persia e do Cáucaso por estarem sob a suspeita de contágio, mas não enviou aos prisioneiros em quarentena nem pão nem água. Desse modo, mais de 400 barcos e vapores foram barrados, dez mil pessoas, doentes e saudáveis, foram entregues juntas à morte pela peste, pela fome e pela sede. Por fim, descendo o Volga, chegou um barco a Astracã como mensageiro da ajuda governamental, os olhares dos esfomeados se ergueram cheios de esperança para o barco salvador. Ele trazia caixões.

Então caiu a tempestade da ira popular. Como um rastilho de pólvora espalhou-se Volga acima a notícia da obstrução e do martírio dos prisioneiros em quarentena no Kaspi, a ela se seguiu o clamor desesperado de que as autoridades disseminavam de propósito a peste para dizimar o povo. As primeiras vítimas da “revolta da cólera” foram os paramédicos, homens e mulheres da intelectualidade que haviam acorrido com autossacrifício e heroísmo a fim de montar barracas nas aldeias para tratar dos doentes e tomar medidas para salvar os sadios. Barracas foram incendiadas, médicos e enfermeiras assassinados. A isso se seguiram expedições de punição, derramamento de sangue, tribunais marciais e execuções. Apenas em Saratov houve 20 condenações à morte. A magnífica região do Volga se transformou mais uma vez num inferno dantesco.

Apenas uma elevada autoridade moral e uma profunda compreensão para as aflições e a psique dos camponeses poderiam trazer luz e sentido a essa sangrenta confusão, e – além de Tolstói – ninguém na Rússia estava apto a desempenhar esse papel senão Korolenko. Ele foi um dos primeiros a postos. Pregou no pelourinho os verdadeiros culpados pela rebelião – a administração absolutista –, e legou à opinião pública um monumento comovente de valor tanto histórico quanto artístico: o ensaio A quarentena da cólera.

Na velha Rússia a pena de morte para crimes comuns fôra abolida havia muito tempo. A execução em épocas de normalidade era uma distinção reservada a crimes políticos. Em especial depois do nascimento do movimento terrorista em fins da década de 1870 a pena de morte estava novamente em alta, e depois do atentado contra Alexandre II o regime czarista nem sequer hesitava em levar mulheres à forca, como a famosa Sofia Perovskaia e Hessa Helfmann. Ainda assim, execuções naquela época, e mesmo posteriormente, eram casos excepcionais, diante do qual a sociedade tremia. Quando na década de 1880 quatro soldados do “batalhão punitivo” foram executados como punição pelo assassinato de seu primeiro-sargento, que os humilhava e maltratava sistematicamente, pôde-se sentir, mesmo no ânimo apático e oprimido daqueles anos, algo como um tremor da opinião pública tomada de um horror mudo.

Isso mudou após a revolução de 1905. Depois que a violência do absolutismo voltou a predominar em 1907, teve início uma sangrenta operação de vingança. Tribunais marciais trabalhavam dia e noite, as forcas não descansavam. Centenas de autores de atentados, participantes em revoltas armadas, mas em especial os chamados “expropriadores”, em sua maioria rapazes mal saídos da adolescência, foram executados, muitas vezes com uma observação negligente das formalidades, com carrascos “inexperientes”, cordas avariadas e forcas fantasticamente improvisadas. A contrarrevolução celebrava orgias.

Então Korolenko ergueu sua voz num sonoro protesto contra a reação triunfante. Sua série de artigos publicada em 1909 sob o título de Um fenômeno diário tem todos os traços típicos de sua escrita. Exatamente da mesma forma que em seus trabalhos sobre o ano da fome e o ano da cólera, não encontramos nele nenhuma fórmula grandiloquente, nenhum pathos estridente, nenhuma sentimentalidade, nada senão uma grande simplicidade e objetividade, uma coleção despretensiosa de matéria factual, cartas dos executados, observações de seus vizinhos de cela. Essa simples reunião de material, porém, se destaca por uma profunda penetração em todos os detalhes do tormento humano, em todos os terrores do coração humano torturado e em todas as dobras do crime social que reside em qualquer condenação à morte; a pequena obra está tão repassada de calor humano e alta moralidade, que se tornou uma comovente peça de acusação.

Tolstói, então com 82 anos, escreveu a Korolenko sob a impressão imediata daquela série de artigos: 

“Acabei de pedir que lessem para mim seu escrito sobre a pena de morte e, por mais que me esforçasse, não pude conter as lágrimas e os soluços. Não tenho palavras para lhe manifestar minha gratidão e amor por esse trabalho extraordinário tanto pela expressão como pelas ideias e sentimento.

Ela teve de ser reimpressa e divulgada em milhões de exemplares. Nenhum discurso na Duma, nenhum ensaio, nenhum drama nem nenhum romance tem condições de produzir um milésimo do efeito benfazejo que brota desse trabalho.

E ele produz esse efeito por que desperta uma tal compaixão por tudo o que aquelas vítimas da loucura humana viveram e ainda vivem, que nós as perdoamos involuntariamente, seja lá o que for que tenham feito, ao passo que, ainda que queiramos, não somos capazes de perdoar os culpados desse horror. Além desse sentimento, o seu escrito ainda nos causa espanto pela cegueira consciente da pessoas que praticam essas crueldades diante do absurdo de seus atos, pois é claro que essas estúpidas crueldades, que o senhor descreve de maneira extraordinária só podem alcançar o contrário do que pretendem. Além de todos esses sentimentos, seu escrito ainda desperta mais um, que me toma plenamente: o sentimento de compaixão não apenas pelos assassinados, mas também por aquelas pessoas iludidas, simples, das quais se abusa – os carcereiros, vigias, verdugos, soldados – e que praticam todos os horrores sem saber o que fazem.

A única coisa boa é esta: que um escrito como o seu une muitas, muitas pessoas animadas, não corrompidas, em um ideal comum do bem e da verdade, um ideal que, façam seus inimigos o que fizerem, como quiserem, brilhará sempre, cada vez mais claro.”

Há cerca de quinze anos um jornal alemão fez uma enquete entre os mais renomados representantes da arte e da ciência sobre a pena de morte: os nomes mais sonoros da literatura e da jurisprudência, a flor da inteligência do país dos pensadores e poetas se pronunciou com um entusiasmo ardente – a favor da pena de morte. Para observadores pensantes este era um dos sintomas que preparavam algumas coisas que iríamos viver durante a Guerra Mundial na Alemanha.

Nos anos de 1890 desenrolou-se na Rússia o famoso processo dos “Votíacos de Multan”. Sete camponeses votíacos da aldeia de Grande Multan na província de Wjatka, meio pagãos, meio selvagens, foram acusados de um assassinato ritual e condenados à prisão. É uma das instituições da civilização moderna que as massas populares, quando o sapato lhes aperta por este ou aquele motivo, de tempos em tempos tomem como bode expiatório pessoas pertencentes a um outro povo, raça, religião, de outra cor de pele, sobre o qual descarregam seu mau humor, a fim de retornar revigoradas às atividades civilizadas do cotidiano. Nem é preciso dizer que para o papel de bode expiatório servem as nacionalidades fracas, historicamente maltratadas ou socialmente atrasadas, contra as quais, justamente por serem fracas o terem sido alguma vez maltratadas pela história, se podem empreender impunemente quaisquer outros maus-tratos. Nos Estados Unidos da América são os negros. Na Europa Ocidental esse papel vez por outra cabe aos italianos.

Há cerca de vinte anos houve no bairro proletário Aussersihl, de Zurique, por causa de um infanticídio, um pequeno pogrom contra os italianos. Na França o nome da comuna de Aigues-Mortes ao memorável levante da massa de trabalhadores que, enfurecida pela baixa exigência salarial dos frugais trabalhadores itinerantes italianos quiseram lhes ensinar, no estilo de seu antepassado primitivo, do homo hauseri da Dordonha, necessidades culturais mais elevadas. Quando eclodiu a Guerra Mundial, aliás, também as tradições de Neanderthal tiveram um inesperado crescimento. A “grande era” se anunciou no país dos pensadores e poetas por uma súbita recaída em massa nos instintos do contemporâneo do mamute, do urso-das-cavernas e do rinoceronte-lanudo.

Pelo menos a Rússia czarista ainda não era um país de cultura, e os maus-tratos dos povos estrangeiros não era ali, como toda forma de atividade pública, uma expressão da psique popular, e sim monopólio do governo, razão pela qual costumavam ser organizados nos momentos apropriados pelas autoridades, através de órgãos estatais e com o auxílio da vodca estatal.

O processo por assassinato ritual de Multan, porém, foi um episódio pequeno, casual da política do governo czarista, que buscava ao menos aqui e ali ir ao encontro do ânimo abatido das massas famintas e oprimidas com uma pequena distração. Mas a intelectualidade russa, e à sua frente, mais uma vez, Korolenko, tomou o partido dos semisselvagens votíacos. Korolenko se lançou com todo o seu afinco em defesa da causa e desemaranhou a rede de mal-entendidos e de falsificações com uma objetividade, paciência e lealdade, com um instinto infalível para a verdade, que lembram o Jaurès do caso Dreyfuss. Korolenko mobilizou a imprensa, a opinião pública, forçou a reabertura do processo, tomou lugar pessoalmente no banco de defesa no tribunal e conseguiu uma absolvição.

O objeto preferido da política de para-raios no Oriente, porém, foi desde sempre a população judia, e é de se perguntar se ela já desempenhou até o fim esse grato papel. Há, em todo caso, um elemento de alto estilo no fato de que o último grande escândalo com o qual o absolutismo se despediu deste mundo, o caso do colar do Ancien Règime russo, por assim dizer, foi um processo por assassinato ritual contra um judeu, o famoso Processo Beilis do ano de 1913. Como um último retardatário do sombrio período contrarrevolucionário dos anos de 1907 a 1911, ao mesmo tempo presságio simbólico da Guerra Mundial, o processo por assassinato ritual de Kichinev se tornou de imediato o centro das atenções do público. Toda a intelectualidade progressista russa assumiu como sua a causa do mestre-açougueiro de Kichinev, o processo se transformou numa batalha geral entre os campos progressista e reacionário da Rússia. Os juristas mais experientes, as melhores penas do jornalismo se colocaram a serviço da causa. Depois de tudo quanto se leu acima, nem é preciso dizer que Korolenko também estava à frente dela. Pouco antes de cair a cortina sangrenta da Guerra Mundial, a reação na Rússia sofreu uma derrota moral atordoante: sob o ataque da intelectualidade oposicionista, a acusação de assassinato ritual desmoronou e desmascarou ao mesmo tempo o caráter hipócrita do regime czarista que, já apodrecido e morto interiormente, esperava pelo golpe de misericórdia do movimento libertário. A Guerra Mundial apenas lhe proporcionou ainda esse breve adiamento.

Mas não foram apenas as ações sociais de socorro e os protestos morais contra toda forma de injustiça que a qualquer momento tiveram em Korolenko seu porta-voz. Nos anos de 1880, depois do atentado contra Alexandre II, sobreveio um período da mais apática desesperança. As reformas liberais dos anos de 1860 foram revertidas em toda parte pela jurisdição, pela autonomia administrativa regional. Uma paz de cemitérios reinava sob os tetos de chumbo do governo de Alexandre III. A sociedade russa, que, por causa do fracasso de todas as esperanças de reformas pacíficas, bem como da aparente inoperância do movimento revolucionário, estava igualmente desanimada, foi também tomada de um ânimo depressivo, resignado.

Nessa atmosfera de apatia e desânimo surgiram na intelectualidade russa correntes místico-metafísicas, como as defendidas pela escola filosófica de Soloviov; as influências de Nietzche podiam ser sentidas nitidamente, nas belas-letras dominava o tom pessimista-desesperado das novelas de Gárchin e dos poemas de Nadson. Mas sobretudo o misticismo de Dostoiévski, tal como se expressa em Os irmãos Karamázov, e especialmente a doutrina ascética de Tolstói, correspondiam àquele estado de ânimo. A propaganda de “não resistência ao mal”, a desaprovação de qualquer emprego da violência na luta contra a reação dominante, à qual só se pode opor a “purificação íntima” do indivíduo, essas teorias da passividade social se tornaram, na atmosfera dos anos de 1880, um sério perigo para a intelectualidade russa, ainda mais por que ela podia se servir de meios tão sedutores quanto a pena e a autoridade moral de Liev Tolstói.

Mikhailóvski, o líder espiritual da tendência dos populistas, desferiu, por isso, uma acerba polêmica contra Tolstói. Korolenko, por sua vez, também entrou em cena. Ele, o sensível poeta lírico, a quem uma experiência da infância na floresta murmurejante, um passeio de crianças na noite escura por um campo deserto, a imagem de uma paisagem em todas as nuances da iluminação acompanharam pela vida inteira, ele, para quem as divisões políticas, no fundo, sempre permaneceram como algo estranho e repulsivo, ergueu então decididamente a voz para pregar o ódio armado, com cintilações de espada, e a resistência ativa. Às lendas, parábolas e contos de Tolstói no estilo do Evangelho, Korolenko respondeu com a Lenda de Florus.

Na Judeia os romanos dominavam a ferro e fogo, saqueavam o país e exploravam população até a exaustão. O povo gemia e se curvava sob o odiado jugo. Comovido com a visão dos sofrimentos de seu povo, o sábio Menahem, filho de Judá, se levanta, apela às tradições heroicas dos antepassados e prega a rebelião contra os romanos, a “guerra santa”. A ele se opõe a seita dos mansos sosseus, que como Tolstói desaprovam qualquer emprego da violência e só veem a salvação na purificação interior, na fuga ao mundo e na renúncia. “Com teu chamado à luta semeias a desgraça!” gritam para Menahem. “Se uma cidade é sitiada e resiste, os sitiadores costumam poupar a vida dos habitantes submissos, mas entregam à morte aqueles que resistirem. Nós pregamos a submissão ao nosso povo a fim de preservá-lo da morte… Não se seca a água com a água e não se apaga o fogo com o fogo. Assim também a violência não é vencida pela violência, pois ela própria é causadora do mal.

A isso Manahem, o filho de Judá, responde sem hesitar: “A violência não é nem um ato benigno nem um mal, ela é violência; bom ou mau é apenas o seu emprego. A violência do braço é um mal quando é empregada para roubar e a oprimir os fracos; mas se é empregada no trabalho ou para a defesa do próximo, então sua violência é uma ação benigna. É verdade que não se apaga o fogo com o fogo e não se seca a água com água, mas a pedra se quebra com a pedra, ao aço se resiste com o aço e à violência com a violência. E mais: a supremacia dos romanos é o fogo, mas a vossa humildade é – lenha. O fogo não se deterá enquanto não tiver devorado toda a lenha.

A Lenda termina com a prece de Menahem: “Ó Adonai, Adonai! Não permitas jamais que, enquanto vivermos, sejamos infiéis ao sagrado mandamento: à luta contra a injustiça… Não permitas jamais que pronunciemos estas palavras: ‘Salvemos a nós mesmos e deixemos os fracos entregues ao seu destino’… Também eu creio, ó Adonai, que teu reino na terra virá. Desaparecerão a violência e a opressão, os povos acorrerão à festa da confraternização, e jamais o sangue humano tornará a ser derramado por mão humana.”

Como uma brisa fresca essa desafiadora profissão de fé se abateu sobre a névoa abafadiça da indolência e da mística. Korolenko fez sua parte para preparar os caminhos que levariam a uma nova “violência” histórica na Rússia, que logo ergueria seu braço benfazejo, o braço do trabalho e da luta libertadora.

IV

Há pouco foi publicada uma edição alemã das memórias de juventude de Maksim Górki, que a em grande parte constitui um interessante contraponto a este livro de Korolenko que se vai ler.

De um ponto de vista artístico, os dois escritores são em certa medida antípodas. Korolenko, assim como Turguêniev, a quem ele tanto venera, é uma natureza intensamente lírica, uma alma suave, um homem dos estados de ânimo; Górki – nisso um continuador da tradição de Dostoiévski – com uma visão de mundo eminentemente dramática, é um homem das energias concentradas, da ação. Em Korolenko, que tem um olhar para todos os horrores da vida social, também os grandes horrores, como em Turguêniev, aparecem deslocados, numa perspectiva em certa medida suavizadora da atmosfera, envoltos no suave perfume da visão poética, do encanto paisagístico. Para Górki, como para Dostoiévski, até a sóbria vida cotidiana está cheia de horríveis fantasmas, de visões martirizantes, que são apresentadas com impiedosa agudeza sem ar e sem perspectiva, por assim dizer, na maior parte das vezes com total desconsideração da paisagem.

Se o drama, segundo a certeira expressão de Ulrici, é a poesia do texto, então o elemento dramático nos romances de Dostoiévski é inconfundível. Eles estão de tal forma repletos de ação, vivência e tensão, numa abundância desnorteante que as sobrepõe umas às outras e ameaça esmagar o elemento épico do romance, romper seus limites a qualquer momento. Pois na maior parte das vezes, depois de ler um ou dois grossos volumes numa tensão de tirar o fôlego, mal podemos nos dar conta de que presenciamos os acontecimentos de apenas dois ou três dias. Igualmente característico da índole dramática de Dostoiévski é o fato de que desde o início de seus romances os principais nós da trama já estão apertados, os grandes conflitos engendrados, prontos a explodir; sua lenta pré-história, seu amadurecimento não são vivenciados, e sim deixados por conta do efeito recompositivo da ação sobre o leitor. Górki escolhe, mesmo quando quer descrever a incapacidade de ação encarnada, a bancarrota da energia ativa do ser humano – como no Asilo noturno, nos Pequenos burgueses – a forma dramática para representá-las e sabe soprar-lhes um lampejo de vida no rosto pálido.

Korolenko e Górki representam não apenas duas individualidades poéticas, mas também duas gerações da literatura russa e da ideologia libertária. Para Korolenko o camponês ainda está no centro do interesse, para Górki, o entusiástico adepto do socialismo científico alemão – o proletário urbano e sua sombra, o lúmpen-proletário. Enquanto em Korolenko a moldura natural da narrativa é a natureza, para Górki é a oficina, o porão habitado, o asilo para desabrigados.

A história de vida fundamentalmente diferente de cada um desses artistas fornece a chave para suas personalidades. Korolenko, que cresceu em um agradável ambiente burguês, tinha na infância o sentimento normal da imutabilidade, da estabilidade do mundo e das coisas que nele existem, como é próprio de todas as crianças felizes. Górki, que tem suas raízes em parte na pequena burguesia, em parte no lúmpen-proletariado, crescido em uma atmosfera genuinamente dostoievskiana de horror latente, crimes e irrupções elementares das paixões humanas, se debate ainda quando criança como um lobinho acuado e mostra ao destino seus dentes pontudos. Essa infância cheia de carências, humilhações, opressões, cheia de um sentimento de insegurança, de ser atirado para lá e para cá, na vizinhança mais próxima da escória da sociedade, contém em si todos os traços típicos do destino do proletariado moderno. E só quem leu as memórias de Górki pode medir sua maravilhosa ascensão dessas profundezas sociais para as alturas ensolaradas da cultura moderna, da arte genial e de uma visão de mundo cientificamente fundamentada. Também nisso os destinos pessoais de Górki são simbólicos do proletariado russo como classe, que logrou se elevar em um tempo espantosamente breve de duas décadas do meio da rude e brutal incultura externa do império czarista através da dura escola da luta para a capacidade de ação histórica. Este é decerto um fenômeno incompreensível para todos os filisteus da cultura, que tomam por cultura a boa iluminação das ruas, os trens que chegam pontualmente e as golas limpas, assim como consideram liberdade política o matraquear incessante dos moinhos parlamentares.

A forte magia da poesia de Korolenko constitui ao mesmo tempo os seus limites. Korolenko está inteiramente enraizado no presente, no momento vivido, na impressão sensorial. Seus contos são como um ramalhete de flores silvestres recém-colhidas; o tempo não é propício ao seu alegre colorido, ao seu delicioso perfume. A Rússia que Korolenko descreve não existe mais, é a Rússia de ontem. A atmosfera delicada, poética, sonhada que paira sobre seu país e sua gente já passou. Ela já deu lugar há uma década, uma década e meia à atmosfera trágica, grávida de uma tempestade, de Górki e seus companheiros, os estridentes pássaros da revolução. Mesmo em Korolenko ela teve de ceder o passo ao ânimo combativo. Nele por fim, como em Tolstói, o combatente social, o grande cidadão triunfa sobre o poeta e o sonhador. Quando nos anos de 1880 Tolstói começou a pregar seu evangelho moral em uma nova forma literária, em pequenos contos de feitio popular, Turguêniev se dirigiu em uma carga suplicante ao sábio de Iásnaia Poliana  a fim de induzi-lo, em nome da pátria, a retornar aos campos da arte pura. Também os amigos de Korolenko choraram por sua perfumada poesia quando ele se lançou com um afã ardente ao jornalismo. Mas o espírito da literatura russa: o elevado sentimento de responsabilidade social, se mostrou nesse poeta abençoado mais forte até mesmo que seu amor pela natureza, pela vida livre de um andarilho, pela criação poética. Arrebatado pelas ondas do dilúvio revolucionário que se aproximava, no final da década de 1990 ele cada vez mais silencia como poeta para apenas fazer cintilar sua espada como pioneiro da liberdade, como centro espiritual do movimento oposicionista da intelectualidade russa. A história de meu contemporâneo, que foi publicada nos anos de 1906 a 1910 na revista A riqueza russa, editada por Korolenko, é o último produto de sua musa, apenas metade poesia, mas inteira verdade, como tudo que pertence a esta vida.

Escrito na penitenciária de Breslau em julho de 1918.

Rosa Luxemburgo

Wladimir Korolenko: Die Geschichte meines Zeizgenossen.

(Aus dem Russischen übersetzt und mit einer Einleitung versehen von Rosa Luxemburg),

Berlin (1919). S. XI-LIII.

[Tradução: Mario Frungillo]