Foto: Rosa Luxemburgo/ Editora Dietz – Fundação Rosa Rosa

Blanquismo e social-democracia (1906)

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Neste artigo, Rosa Luxemburgo toma posição ao lado dos bolcheviques contra os mencheviques, polemizando com Plekhanov, que chamou os bolcheviques de blanquistas.

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O camarada Plekhanov publicou um detalhado relato no Kurjer, intitulado Onde está a direita?, no qual acusa os chamados bolcheviques de “blanquistas”.[1]

Nosso objetivo não é defender os camaradas russos, contra os quais o camarada Plekhanov assesta as baterias de sua sabedoria e dialética, pois certamente podem fazer isso por si sós. Mas é verdade que a pergunta merece alguma atenção, podendo ser de interesse também para nossos leitores, razão pela qual abrimos um espaço para ela agora.

A fim de caracterizar o blanquismo, o camarada Plekhanov traz uma citação de Engels sobre Blanqui, um revolucionário francês dos anos 1840 cujo nome acabou batizando todo o movimento. “Em sua atividade política’, diz Engels[2], “[Blanqui] foi basicamente um ‘homem de ação’. Ele acreditava que uma minoria bem organizada, a qual, no momento certo, tenta um golpe de mão revolucionário, já consegue arrastar a massa popular com os primeiros êxitos e, assim, fazer uma revolução bem-sucedida. […] Pelo fato de Blanqui conceber qualquer revolução como golpe de mão de uma pequena minoria revolucionária, segue a necessidade da ditadura depois do êxito – bem-entendido, não de toda a classe revolucionária do proletariado, e sim do reduzido número daqueles que realizaram o golpe e que já de antemão voltarão a estar organizados sob a ditadura de um ou de alguns poucos”.[3]

Friedrich Engels, colaborador de Karl Marx, sem dúvida é uma grande autoridade, mas se essa caracterização de Blanqui se aplica ou não é uma pergunta que continua em aberto. Pois em 1848 Blanqui não precisava obrigatoriamente supor que o seu clube continuaria uma “pequena minoria”; ao contrário, naquela época de um grande movimento revolucionário ele certamente contava com que todo o povo trabalhador – se não na França, pelo menos em Paris – seguiria o seu apelo à luta contra a política sorrateira e vergonhosa do ministério burguês, o qual tentava “arrancar ao povo as suas conquistas’. Mas não se trata disso, e sim do fato de Plekhanov tentar provar que a caracterização de Blanqui feita por Engels poderia ser aplicada aos chamados bolcheviques (que o camarada Plekhanov já agora chama de minoria, porque durante o congresso de unificação do partido eles revelaram ser uma minoria).[4] Literalmente, ele se expressa da seguinte maneira: “Toda essa caracterização pode ser aplicada inteiramente à nossa atual minoria”. Em seguida, confirma suas próprias palavras desta maneira: “A relação entre blanquistas e as massas foi utópica no sentido de que eles não compreenderam quão importante é a sua autonomia revolucionária. De seus planos, na verdade, participaram apenas conspiradores, a massa aparecia apenas quando era arrastada pela minoria bem organizada”.[5] Portanto, o camarada Plekhanov acha que os camaradas russos bolcheviques (vamos nos ater à expressão usual) seriam reféns desse “pecado original do blanquismo”. Na nossa opinião, o camarada Plekhanov não embasou a sua acusação. A comparação com os populistas, que efetivamente eram blanquistas, não prova nada, e a observação maldosa de que Sheljabov, herói e líder de Narodnaia Volia, teria tido um instinto político mais agudo do que Lênin, o líder dos bolcheviques, é de demasiado mau gosto para que nos detenhamos nela.[6] Mas como já dizíamos, não é nosso objetivo defender os bolcheviques e Lênin, uma vez que eles nunca se deixaram enganar. O que nos importa é a natureza da questão. Mas logo se impõe a pergunta: o blanquismo ainda seria possível na revolução russa de hoje? Ou, se existe tal tendência, é capaz de exercer alguma influência?

Acreditamos que basta colocar as perguntas dessa maneira para que cada um que está um pouco familiarizado com a atual revolução e que entrou em contato com ela diretamente pudesse responder com uma negativa. Ali reside toda a diferença entre as condições no ano de 1848 na França e aquelas de hoje no Estado russo, porque a proporção entre a “minoria organizada” – ou seja, o partido do proletariado – e a massa mudou de modo fundamental. No ano de 1848, os revolucionários que se tinham por socialistas faziam esforços desesperados para inocular ideias socialistas nessas massas, a fim de afastá-las do apoio do socialismo burguês vazio. O próprio socialismo era mal definido, utópico, pequeno-burguês. Na Rússia, a questão hoje se apresenta de outra maneira: nem a nossa democracia progressista pútrida, nem a sociedade dos cadetes, nem os constitucionalistas czaristas na Rússia, nem qualquer outro partido “progressista” burguês em outras partes do Estado conseguiu conquistar as amplas massas trabalhadoras. Hoje, essas massas se aglutinam por si próprias ao redor da bandeira do socialismo: desde a eclosão da revolução seguem espontaneamente e por mote próprio sob a bandeira vermelha. Nosso próprio partido oferece a melhor prova. Sequer imaginamos esconder que ainda em 1903 éramos apenas um grupinho; o partido inteiro, no sentido estrito da palavra – ou seja, os camaradas verdadeiramente organizados – contava no máximo algumas centenas de pessoas, sendo que, nas manifestações, só um pequeno grupo de trabalhadores aderia a nós. Hoje, somos alguns milhares.[7]  De onde vem essa diferença? Temos tantos líderes geniais no partido? Ou será que somos excelentes conspiradores? Nada disso. Nenhum dos nossos “líderes”, ou seja, aqueles aos quais o partido confiou o trabalho responsável, teria a ideia de se comparar ao leão da revolução, ao velho Blanqui, expondo-se, assim, ao ridículo. E poucos dos nossos agitadores se parecem com aqueles conspiradores do clube dos blanquistas no que se refere à sedução pessoal e à capacidade de organização. Como, portanto, se explica o nosso sucesso, como se explica o fracasso dos blanquistas? Simplesmente pelo fato de a “massa” ser diferente. As fileiras de trabalhadores que hoje lutam contra o domínio tsarista são pessoas que viraram socialistas ao longo da vida, que beberam com o leite materno o ódio à ordem vigente, pessoas a quem a necessidade ensinou a pensar de modo socialista.

Eis a diferença. Ela não se explica pelos líderes e nem pelas ideias, mas foi gerada pelas condições socioeconômicas, porque elas são tais que a luta de classes entre o proletariado e a burguesia não pode deixar de acontecer.

Em suma: como as massas são diferentes, como o proletariado é outro, hoje não se pode falar da tática dos conspiradores e do blanquismo. Blanqui e seus camaradas fizeram esforços descomunais no sentido de atiçar as massas para a luta de classes. Mas falharam, porque estavam lidando com trabalhadores que ainda não haviam cortado o cordão umbilical das corporações e que continuavam presos a conceitos pequeno-burgueses.

Nós, os social-democratas, temos hoje uma missão muito mais fácil e simples: precisamos apenas agir no sentido de levar adiante a luta de classes que eclodiu com uma necessidade impiedosa. Os blanquistas se esforçaram por arrastar as massas e nós, os social-democratas, hoje praticamente somos tocados para a frente pelas massas. É uma grande diferença, tanto quanto entre o remador que move o barco com muito esforço contra a correnteza e aquele que comanda um barco arrastado pela própria correnteza; o primeiro pode perder a força antes de atingir a meta, o outro só precisa atentar para que o barco não perca a direção, se estilhaçando contra os rochedos ou batendo em um banco de areia.

Portanto, que o camarada Plekhanov fique calmo ao olhar para a “autonomia revolucionária das massas”. Essa autonomia existe, nada pode detê-la, e todas as ordens professorais – pedimos desculpas pela expressão, mas não encontramos outra melhor – sobre a sua necessidade apenas geram um sorriso entre aqueles que agem naquela massa e junto com ela.

Nós duvidamos que os camaradas da “bolchinstvo” na Rússia apenas cometem os erros dos blanquistas, como afirma o camarada Plekhanov. Talvez houvesse traços disso na minuta de organização redigida pelo camarada Lênin em 1902, mas isso pertence a um passado longínquo, pois hoje em dia vivemos em uma velocidade vertiginosa.[8] Esses erros foram corrigidos pela própria vida e não há que temer que se repitam. Consequentemente, o fantasma do blanquismo não é tão ameaçador, pois não haverá de ressuscitar nas atuais condições. Mas existe o perigo de que o camarada Plekhanov e seus seguidores da “mechinstvo”, que tanto temem o blanquismo, caiam no outro extremo e acabem no banco de areia. Encontramos esse outro extremo quando os camaradas têm temores excessivos de permanecer na minoria, olham demais para as massas que estão fora do proletariado. Daí o olhar de soslaio para a Duma, daí os lemas falsos nas “orientações” do comitê central para apoiar os senhores cadetes, reivindicando “fora o ministério burocrático” e outros erros táticos. – O barco não vai encalhar no banco de areia, não é preciso temer isso; a correnteza no rio caudaloso da revolução continuará carregando o barco do proletariado, mas seria pena se perdêssemos um momento sequer em razão desses erros.

Também o conceito de “ditatura do proletariado” assumiu outro significado do que antigamente. Friedrich Engels tem razão em enfatizar que os blanquistas não pensaram na ditadura de “toda a classe revolucionária, do proletariado, e sim do pequeno número daqueles que deram o golpe”[9], etc.

Hoje, a questão se apresenta de forma completamente diferente. Nenhuma “organização de conspiradores” pode “incitar um levante” ou pensar em sua ditadura. Disso, na própria Rússia há muito tempo já não sonham mais os populistas e seus herdeiros autoproclamados, os socialistas revolucionários. Quando hoje os camaradas bolcheviques falam da ditadura do proletariado, não estão conferindo ao termo um significado blanquista, não caíram no erro de Narodnaia Volia que sonhou com a tomada do poder (sachwat wlasti). Muito pelo contrário, acham que a atual revolução poderia acabar na dominação do proletariado, portanto de toda a classe revolucionária, sobre a máquina do Estado. O proletariado, enquanto fator mais revolucionário, pode meter-se no papel do liquidante da velha ordem e “tomar o poder” para evitar a contrarrevolução, para não permitir que a revolução caia num pântano por meio da burguesia que, por natureza, é reacionária. Até agora, nenhuma revolução terminou de outra forma senão com a ditadura de uma classe, e todos os fatos apontam para que o proletariado agora possa vir a ser esse liquidante. Evidentemente, nenhum social-democrata se engana com a suposição de que o proletariado poderia se manter no poder, pois se se mantivesse, se houvesse a dominação de sua classe, o socialismo se concretizaria. Para tal, as forças hoje são insuficientes, porque no Estado russo o proletariado, na acepção precisa da palavra, constitui uma minoria na sociedade. A concretização do socialismo por meio de uma minora, no entanto, está totalmente excluída, porque a ideia do socialismo exclui o predomínio de uma minoria. Portanto, depois de sua vitória política sobre a dominação tsarista, o proletariado perderá no dia seguinte o poder para a maioria. Concretamente: depois da queda da dominação tsarista, o poder vai para o segmento mais revolucionário da sociedade, o proletariado, que assumirá todos os postos e ali permanecerá pelo tempo necessário até colocar o poder nas mãos dos legalmente convocados, aqueles que só podem ser determinados pela Constituinte votada por toda a população. Mas diante do fato de que na sociedade não é a classe trabalhadora que perfaz a maioria, não é o proletariado, e sim a pequena burguesia e os camponeses, mesmo na Constituinte não haverá uma maioria dos social-democratas, e sim dos democratas camponeses e pequeno-burgueses. Podemos lamentar isso, mas não temos como mudar esse fato.[10]

Assim a coisa se apresenta em linhas gerais a partir da perspectiva dos bolcheviques, e essa visão é defendida também por todos os partidos e organizações social-democratas no império czarista – menos na Rússia verdadeira. Difícil entender onde aqui estaria o “blanquismo”.

Para demonstrar a sua afirmação, o camarada Plekhanov precisa se agarrar a cada palavra junto ao camarada Lênin e seus seguidores. Mas já que estamos nos agarrando à palavra individual, poderíamos muito bem também demonstrar que os mencheviques, há não muito tempo, eram “blanquistas’, a começar pelo camarada Parvus e a terminar pelo camarada Plekhanov. Só que isso seria uma brincadeira escolástica infértil. O tom do artigo do camarada Plekhanov é muito irritado e excitado, o que é maçante. Júpiter se enfurece porque não tem razão.[11]

Seria tempo de acabar com esse método escolástico, com essa busca por quem é blanquista e quem é marxista ortodoxo. A questão hoje consiste em saber se, neste momento, a tática recomendada pelo camarada Plekhanov e seus camaradas mencheviques está correta, portanto, a tática que conta com uma possível participação na Duma e que conta com as camadas fora da Duma nela representadas; ou então a tática em que tanto nós quanto os camaradas bolcheviques nos apoiamos, a qual se baseia no fundamento de que o epicentro está fora da Duma, no comportamento ativo das massas populares revolucionárias. Até agora, os camaradas mencheviques não conseguiram convencer ninguém da correção de suas opiniões. E colar nos adversários a etiqueta com a inscrição “blanquista” também não convence ninguém.[12]

 Czerwony Sztandar, nº 82, 27 de junho de 1906, p.1-2.

Tradução: Kristina Michahelles

* Publicado em Rosa Luxemburgo, Arbeiterrevolution 1905/06 – Polnische Texte, org. por Holger Politt, Berlim, Dietz, 2015, p.214-19.

[1] O artigo de Plekhanov, Gde she pravaja storona i gde ‘ortodoksija’? [Onde está o partido de direita e onde a ‘ortodoxia’] saiu publicado em 8 de junho de 1906 no jornal Kurjier, editado de 30 de maio a 1º de julho de 1906 em Petersburgo e que pertencia à ala menchevique. Ver Sotschinenija (Obras), v.15, Woprosy taktiky w epochu perwoj rewoljutzii (1905-1908) [Questões de tática na época da primeira revolução (1905-1908)], p.146-155.

[2] Não temos à mão o trabalho de Engels, por isso não traduzimos do original e sim da versão russa do camarada Plekhanov (nota de Rosa Luxemburgo).

[3] Friedrich Engels, Flüchtlingsliteratur. II. Programm der blanquistischen Kommuneflüchtline [Literatura de refugiados. II Programa dos refugiados blanquistas da Comuna]. In: MEW, v. 18, p.529.

[4] 4º Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo em Estocolmo, de 23 de abril a 8 de maio de 1906, entrou para a história como o congresso da união, porque o objetivo era unificar bolcheviques e mencheviques.  Ao mesmo tempo, nesse congresso a SDKPiL (Social-democracia do Reino da Polônia e Lituânia) aderiu ao partido russo, sendo que a União Judaica dos Trabalhadores da Lituânia, Polônia e Rússia (conhecida como Bund) e a social-democracia da Letônia declararam a intenção de fazer o mesmo. A SDKPiL saudou as adesões da seguinte maneira: “Mesmo sendo um fato relevante na história do proletariado revolucionário, a unificação da social-democracia da Polônia e Rússia, no fundo, é no fundo a constatação formal e o coroamento de um fato bem mais marcante na história da Polônia e de sua relação com a Rússia. A unificação da social-democracia da Polônia e da Rússia foi antecipada pela unificação factual de todo o nosso proletariado revolucionário com o da Rússia”. Zjednoczenie socjaldemokracji Polski i Rosji ([A unificação da social-democracia da Polônia e da Rússia], in: Czerwony Sztandar, nr. 71, 24 de maio de 1906, p.1.  A unificação durou até 1911, quando bolcheviques e mencheviques romperam definitivamente e a SDKPiL não quis aderir a nenhum dos dois lados.

[5] Plekhanov, Sotschinenija, vol. 15, p.152.

[6] Idem.

[7] Em 1906, a SDKPiL contava cerca de 30 mil membros, número que cresceu para 40 mil no ano seguinte.

[8] Ver V. I. Lênin, Que fazer? As questões palpitantes do nosso movimento, in: Obras, v.5, p. 355-551.

[9] Engels, Literatura de refugiados, op. cit.

[10] Em novembro de 1905, Rosa Luxemburgo havia dito o seguinte em uma palestra em Leipzig: “A Revolução russa precisa gerar um aguçamento das lutas de classe, seja ela vitoriosa ou não. Uma vitória da revolução certamente não criará nenhum paraíso, mas já se criar apenas um moderno Estado burguês de direito, em seu interior eclodirão com violência as lutas entre partidos e classes. A partir de então, também a luta política avançará com passos largos em todos os países modernos, abrindo uma nova era para a Europa.” (Gesammelte Werke 6, p.636).

[11] “Geralmente recorremos a invectivas quando faltam provas. Quando dois brigam, podemos apostar que ficará iracundo aquele que não tem razão. ‘Você recorre à sua borduna do trovão, em vez de me responder’, disse Menipo a Júpiter, ‘portanto, não tem razão” (Johann Gottfried Buhle, Geschichte der neuern Philosophie seit der Epoche der Wiederherstellung der Wissenschaften [História da nova filosofia desde a época da reconstituição das ciências], v. 6, Göttingen, 1804, p.419).

[12] Na data de 11 de julho de 1906 a direção da SDKPiL (Social-democracia do Reino da Polônia e Lituânia) enviou carta-circular para todas as organizações subordinadas, tomando posição em relação à dissensão dentro do POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo) acerca da questão em relação à Duma. “A situação é dificultada pela guinada incomumente forte para a direita realizada por uma certa parte da social-democracia russa. Essa guinada é vitoriosa no congresso do partido e obriga o partido a tomar uma posição contrária à atual. Conscientes de que essa guinada é um erro, nós o combatemos energicamente, com o que desviamos nossa atenção das nossas tarefas positivas, da concretização de ações necessárias ligadas à Duma até as tarefas negativas, para defender a velha posição do boicote”. (Archiwum ruchu robotniczego, v.5, p.177).