1907 - Rosa Luxemburgo em sua residência - crédito Editora Dietz - Fundação Rosa Luxemburgo

Discurso sobre o papel da burguesia na Revolução de 1905/1906 na Rússia (1907)

Foto: 1907 – Rosa Luxemburgo em sua residência. Crédito: Editora Dietz/Fundação Rosa Luxemburgo

Discurso proferido no Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo, em Londres (maio-junho de 1907), no qual o partido polonês de Rosa Luxemburgo (SDKPiL) formava uma tendência crítica aos bolcheviques. Ela enfatiza que apesar das discordâncias quanto ao armamento das massas, ambos os grupos estavam situados no mesmo campo revolucionário.

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A mim e aos representantes da delegação polonesa, a questão em discussão1 não interessa tanto do ponto de vista da luta interna da tendência, mas sim do ponto de vista dos princípios da tática proletária internacional. A posição da ala da direita do nosso partido apresenta uma construção totalmente coerente em relação aos partidos burgueses, apoiada na conhecida concepção do papel histórico da burguesia, bem como do papel do proletariado na atual revolução. Essa concepção se baseia num determinado esquema que um dos venerados veteranos e grandes teóricos da social-democracia russa formulou de modo claro e preciso. Em suas Cartas sobre a tática e a falta de tato, diz o companheiro Plekhanov: “Os criadores do Manifesto Comunista escreveram há 58 anos que ‘a burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, ou seja, as relações de produção, ou seja, todas as relações sociais.’” E, sobre a missão política da burguesia: “A burguesia se encontra em uma luta contínua: primeiro contra a aristocracia; depois contra partes da própria burguesia, cujos interesses entram em contradição com o progresso da indústria… Em todas essas lutas…” a burguesia “se vê obrigada a apelar ao proletariado, a aceitar sua ajuda e, assim, a atraí-lo para o movimento político. A própria burguesia, portanto, provê o proletariado com os seus próprios elementos de formação, isto é, com armas contra si mesma.”

É precisamente essa concepção do papel político da burguesia que, na visão de uma ala do nosso partido, deve determinar toda a tática do proletariado russo na atual revolução. A burguesia é uma classe revolucionária que atrai as massas populares na luta contra a ordem antiga, a burguesia é a vanguarda natural e o educador do proletariado. Por isso, na Rússia de hoje, só reacionários maldosos ou quixotes inveterados poderiam “atrapalhar” a burguesia na conquista do poder político. Por isso, os ataques ao liberalismo russo devem ser contidos até os cadetes chegarem ao poder2; por isso, não se deve atravancar a revolução burguesa; por isso, a tática do proletariado, que pode enfraquecer ou afugentar os liberais, é a maior falta de tato e, por isso, qualquer intuito de isolar o proletariado da burguesia liberal é quase um serviço que se presta à reação. Isso, sem dúvida, é um sistema fechado e coerente de concepções, mas ele requer urgentemente exame, tanto em relação aos fatos históricos quanto do ponto de vista das bases da própria tática proletária.

Há 58 anos, Marx e Engels escreveram no Manifesto Comunista…” – Infelizmente, não estou familiarizada com todas as obras do nosso venerado teórico e criador do marxismo russo, mas não conheço um único de seus livros nos quais ele não tente instilar nos social-democratas russos que só mesmo os metafísicos sentenciam de acordo com a fórmula “sim-sim, não-não” e o que há além disso é do Mal. O pensamento dialético, que caracteriza o materialismo histórico, exige que não se observe o fenômeno no estado enrijecido, e sim em movimento. Tentar invocar a caracterização do papel da burguesia, feita por Marx e Engels há 58 anos, a fim de aplicá-la à realidade atual representa um exemplo extremo de pensamento metafísico, uma transformação da visão viva e histórica dos criadores do manifesto em dogma congelado. Basta lançar uma olhada à natureza e situação dos partidos políticos, em especial ao estado do liberalismo na Alemanha, França, Itália, Inglaterra, em toda a Europa Ocidental, para compreender que há muito tempo a burguesia deixou de desempenhar o papel político revolucionário que já teve no passado. A sua atual guinada geral para a reação, para a política de proteção alfandegária, sua veneração do militarismo, seu pacto com os agrários conservadores, tudo isso prova que os 58 anos desde o surgimento do Manifesto comunista não transcorreram sem deixar traços. A própria breve história do liberalismo russo não seria também uma prova de quão pouco se pode aplicar a ele o esquema derivado das palavras do Manifesto? Rememoremos o que o liberalismo russo representava ainda há cinco anos. Na época, ainda era lícito duvidar se esse “educador do proletariado”, que não queremos “incomodar” para que ele possa “chegar ao poder”, realmente existia na Rússia. Até o ano de 1900 o liberalismo suportou, paciente, toda pressão do absolutismo, toda expressão de despotismo. E somente quando o proletariado russo, educado por um longo trabalho da social-democracia e agitado pela guerra japonesa, adentrou a arena pública através de manifestações de massa e grandiosas greves no sul da Rússia, o liberalismo russo decidiu dar o primeiro e hesitante passo. Começou a famigerada epopeia dos congressos zemstwo, das petições de professores e dos banquetes de advogados.3 Inebriado pela sua própria capacidade de falar e pela liberdade que lhe foi concedida inesperadamente, o liberalismo estava pronto para acreditar em sua força. Mas como terminou essa epopeia? Todos lembramos do famoso momento de novembro/dezembro de 1904, quando a “primavera liberal” de repente se tornou cinzenta e o absolutismo convalescente emudeceu o liberalismo de um só golpe, sem qualquer cerimônia, simplesmente mandando que se calasse.4 Todos nós vimos como o liberalismo, com um único pontapé, uma única chicotada do absolutismo, imediatamente despencou da altura de seu poder aparente para o precipício de uma impotência sem esperança. O liberalismo não encontrou mais resposta ao golpe do bastão dos cossacos. Encolheu, calou-se e, assim, mostrou a todos a sua nulidade. E o movimento de libertação da Rússia foi interrompido por uma paralisia palpável durante algumas semanas, até que o dia 9 de janeiro levou o proletariado de São Petersburgo às ruas, mostrando quem foi chamado nessa revolução a ser a verdadeira vanguarda e o verdadeiro “pedagogo”. No lugar do cadáver do liberalismo burguês surgiu uma força viva (aplausos).

O liberalismo russo ergueu a cabeça pela segunda vez quando a pressão das massas populares obrigou o absolutismo a convocar a Primeira Duma. Os liberais voltaram a se sentir fortalecidos e a acreditar que eram os líderes do movimento de libertação, que era possível atingir resultados por meio da oratória de advogados e que constituíam um poder. Mas seguiu-se a dissolução da Duma e o liberalismo caiu pela segunda vez no precipício da impotência e da nulidade. Tudo o que ele conseguiu responder ao ataque da reação por força própria foi o famigerado apelo de Wiborg, aquele clássico documento da “resistência passiva” sobre o qual Marx escreveu em 1848 no Neue Rheinische Zeitung, dizendo que parecia a resistência do vitelo ao açougueiro (aplausos).

Dessa vez o liberalismo perdeu a ilusão de sua força e de seu papel de liderança na atual revolução. Já na Primeira Duma perdeu a ilusão de que era possível destruir os muros da fortaleza absolutista com a habilidade oratória de juristas e parlamentares, como se fossem trombetas de Jericó. Na época da dissolução da Duma, perdeu a ilusão de que o proletariado tinha sido chamado a desempenhar contra o absolutismo o papel do fantasma, que os liberais mantêm escondido atrás dos bastidores enquanto não precisam dele, e chamando-o com um aceno ao palco quando querem espantar o absolutismo e fortalecer a própria posição. O liberalismo precisava ser convencido de que o proletariado russo não é um fantoche nas suas mãos, que não está disposto a servir sempre de bucha de canhão à burguesia, mas que é, sim, uma força que trilha o seu próprio caminho nessa revolução, segundo as leis e a lógica de seu próprio movimento, independentemente do movimento dos liberais. Desde aquele tempo o liberalismo decididamente mudou de opinião, e agora somos testemunhas de sua vergonhosa retirada na Segunda Duma, a de Golowin e Struwe,5 na qual se aprovam o orçamento, a obrigatoriedade do serviço militar e a baioneta com a qual a própria Duma será derrubada amanhã. Assim é a burguesia que nos recomendam ver como uma classe revolucionária, que não devemos “importunar” no caminho da chegada ao poder e que teria a vocação de “educar” o proletariado. Revela-se que o esquema enrijecido nem é mais aplicável à Rússia de hoje. Mostra-se que o tal liberalismo revolucionário, que almeja o poder, e a quem a tática do proletariado deve ser adequada, para quem estamos dispostos a cortar as reivindicações do proletariado, que esse liberalismo revolucionário russo, na verdade, nem existe, mas que é um construto da fantasia, algo inventado, um fantasma (aplausos). E essa política construída sobre um esquema morto e condições inventadas, que leva em conta as tarefas especiais do proletariado nessa revolução, é chamada de “realismo revolucionário”.

Mas vejamos como isso pode ser harmonizado com a tática proletária. Ao proletariado russo se recomenda que, em sua tática de luta, cuide para não solapar antes da hora a força do liberalismo e que não se isole dele. Mas, se isso é designado de tática “sem tato”, então, temo que toda a atividade e a história inteira da social-democracia alemã não passe de uma única e ininterrupta falta de tato porque, começando com a agitação de Lassalle contra os “progressistas” e até o atual momento, o crescimento da social-democracia acontece às custas do crescimento e das forças do liberalismo. Cada passo que o proletariado alemão avança puxa o tapete do liberalismo. O mesmo fenômeno acompanha o movimento de classe do proletariado em todos os países. Deveríamos então qualificar de falta de tato a Comuna de Paris, porque ela isolou o proletariado francês e tanto assustou a burguesia liberal de todos os países. Da mesma forma, a entrada em cena do proletariado francês nas famosas Jornadas de Junho [de 1848], em que se “isolou” definitivamente enquanto classe da sociedade burguesa, também deveria ser chamada de falta de tato. Menos tato ainda demonstrou a participação aberta do proletariado na grande Revolução Francesa, quando espantou a burguesia em meio ao seu primeiro movimento revolucionário com o seu comportamento extremado, jogando-a nos braços da reação e preparando, dessa maneira, a época do diretório e da liquidação da maior revolução. Finalmente a maior falta de tato deveria ser o nascimento – indubitavelmente histórico – do proletariado enquanto classe social autônoma (aplausos), pois assim se criou a base, tanto para a sua “posição isolada” em relação à burguesia, quanto para a lenta decadência do liberalismo burguês. Mas não estaria a história do desenvolvimento revolucionário da Rússia demonstrando aqui também quão impossível, pela sua própria natureza, é, para o proletariado, evitar essas “faltas de tato” que servem de estopim para nos assustar com a ameaça de que, através delas, terminemos sendo ajudantes involuntários da reação? Já a primeira aparição do proletariado russo, que inaugurou formalmente a época da atual revolução – refiro-me ao dia 9 de janeiro de 1905 – cumpriu de uma só vez um estrito isolamento da tática proletária em relação à tática liberal, separou a luta revolucionária das ruas da campanha liberal dos banquetes e dos congressos zemstwo, que tinham entrado num beco sem saída. Depois disso, cada passo, cada reivindicação do proletariado aumentou o seu isolamento na atual revolução. O movimento grevista o isolou da burguesia industrial, a reivindicação pela jornada de oito horas o isolou da pequena burguesia, a reivindicação da República e da Assembleia Constituinte o isola do liberalismo em todas as suas gradações – e, finalmente, a meta final, o socialismo, o isola do mundo inteiro. Portanto, não existem fronteiras e nem se podem traçar limites. Se o proletariado se guiasse pelo medo de se isolar do liberalismo e de lhe puxar o tapete, deveria abrir mão de toda a sua luta, da política proletária inteira, de toda a sua história no ocidente e, entre outros, também de toda a sua atual revolução na Rússia. A questão é: aquilo que é tido como condições e tarefas especiais numa determinada etapa da história do proletariado – a sua posição em relação ao liberalismo sob as condições da luta contra a velha autocracia – são na realidade as condições que acompanham o desenvolvimento histórico do proletariado do seu nascimento até o seu fim. São as condições básicas da luta proletária, surgidas a partir do simples fato de que o proletariado adentra o palco da história junto com a burguesia, cresce às suas custas e, ao se emancipar gradualmente dela, aproxima-se, nesse processo, da vitória final sobre ela. O proletariado na Rússia é o que menos pode mudar essa tática atualmente. Até agora, nas revoluções, as contradições entre as classes só apareciam no curso dos confrontos revolucionários. A atual revolução na Rússia é a primeira nascida a partir de contradições de classe totalmente amadurecidas e conscientes na sociedade capitalista, e a tática do proletariado na Rússia não tem como esconder esse fato artificialmente.

Estreitamente associada a essas concepções fundamentais sobre a relação com o liberalismo burguês está a concepção das condições e formas da luta de classes, em geral, e da relevância do parlamentarismo, em particular. Outro veterano idolatrado da social-democracia russa apresentou esse lado da questão em um discurso de certa maneira clássico no congresso do partido em Estocolmo.6 O discurso é permeado pelo seguinte pensamento, como um fio vermelho: primeiro, vamos atingir uma boa ordem burguesa, alguma constituição, com um parlamento, eleições, etc., e então saberemos conduzir a luta de classes como deve ser, estaremos no solo firme da tática social-democrata, forjada pela experiência de longos anos do partido alemão. Mas enquanto não houver parlamento, faltarão as condições mais elementares para a luta de classes. E agora o mesmo teórico idolatrado do marxismo russo procura desesperadamente na atual realidade russa os mínimos pontos de partida para a luta de classes – o “ponto de partida” é a expressão predileta desse discurso – e os encontra nas mínimas alusões a parlamentarismo e constituição, ainda que caricatas. Aqui, realmente, é o caso de citar Goethe:

Ein Kerl, der spekuliert

Ist wie ein Tier, auf dürrer Heide

Von einem bösen Geist im Kreis herum geführt,

Und ringsherum liegt schöne grüne Weide.7

Para esses especuladores parece que não existe solo para a luta de classes, enquanto a social-democracia não tem iniciativas, não tem força, não entende as possibilidades e as amplas perspectivas que a História oferece.

No auge da atual revolução na Rússia, segundo esse orador, não há possibilidade de levar adiante a luta de classes e só existem “pontos de partida” diminutos. Todas as reivindicações políticas do proletariado “e até a própria República”, observa o orador, não seriam expressão da luta de classes por não representarem nada de especificamente proletário. Mas, nesse caso, – e nos referimos novamente à prática do movimento operário internacional –, nós nem conduzimos nenhuma luta de classes verdadeira na Alemanha, pois, como se sabe, toda a luta política da social-democracia alemã está orientada para as reivindicações do chamado programa mínimo, que contém quase que exclusivamente palavras de ordem democráticas, como o direito universal ao voto e o direito ilimitado de coalizão, etc. E nós insistimos nessas reivindicações contra toda a burguesia. É sabido, porém, que mesmo as reivindicações proletárias, como a legislação trabalhista, não constituem nada especificamente socialista, apenas expressando as reivindicações da economia capitalista progressista. Assim, a análise que admite o caráter da luta de classes da atual revolução sob as palavras de ordem políticas do proletariado é menos um exemplo do pensamento marxista do que expressão de um estado psicológico comumente caracterizado com as seguintes palavras: não sei onde está minha cabeça. É realmente preciso ter uma ideia preconcebida muito tenaz da forma exclusivamente parlamentarista de luta política para não enxergar a grande ascensão da luta de classes atualmente na Rússia, e procurar, vacilante e hesitante, pelos “pontos de partida”, sem compreender que todas as palavras de ordem políticas da atual revolução são justamente as expressões da luta de classes do proletariado, precisamente porque a burguesia se distanciou ou se distancia delas. Quem menos deveria subestimar esta situação é a social-democracia russa. Basta lembrar como era a social-democracia russa antes do dia 9 de janeiro de 1905 e o que representa hoje. Meio ano de movimento revolucionário e de greves depois de janeiro de 1905 transformou o pequeno grupinho de revolucionários, de pequena seita em um imenso partido de massas, e as preocupações da social-democracia não consistem na dificuldade de encontrar “pontos de partida” para a luta de classes mas, pelo contrário, na dificuldade de apreender e aproveitar o imenso campo de atividade que se abriu para ela com a gigantesca luta de classes da revolução. Encontrar proteção em meio a essa luta e se agarrar – como alguém que está se afogando se agarra a uma palha – aos menores sinais de parlamentarismo, como única garantia para a luta de classes que ainda está por acontecer depois da vitória dos liberais, significa não entender que a revolução é um período criador, em que a sociedade se decompõe em classes. Aliás, o esquema ao qual quiseram amoldar a luta de classes do proletariado russo é um esquema grosseiro, que não foi realizado em nenhuma parte na Europa ocidental e que não passa de um simulacro de toda a diversidade da realidade.

Naturalmente, o verdadeiro marxismo está tão distante da superestimação unilateral do parlamentarismo quanto da concepção mecânica da revolução e da superestimação da chamada revolta armada. Nisso, meus camaradas poloneses e eu temos uma opinião diferente da dos camaradas bolcheviques. Nós, na Polônia, desde o início da revolução – quando essa questão nem estava na ordem do dia dos camaradas russos – fomos obrigados a contar com a tentativa de conferir à tática revolucionária do nosso proletariado o caráter de conspiração e de aventura revolucionária. Desde o início, explicamos – e creio que conseguimos enraizar essa concepção nas fileiras do proletariado polonês consciente – que consideramos utópico o plano de armar as amplas massas populares por meio de vias ilegais, bem como o de preparar e organizar intencionalmente a chamada insurreição armada. Sempre dissemos que a tarefa da social-democracia não reside na preparação técnica, e sim política, da luta de massas contra o absolutismo. Naturalmente entendemos que é necessário esclarecer as massas mais amplas do proletariado de que o seu iminente confronto com o poder armado da reação, o levante popular geral, consiste na única conclusão da luta revolucionária que pode garantir a sua vitória e o inevitável fim do seu progressivo desenvolvimento. Mas no que concerne a continuação e a preparação técnica, a social-democracia não está em condições de fazer isso (aplausos. Plekhanov: “Corretíssimo!”). Os camaradas do lado esquerdo observam “Corretíssimo!” Mas eu temo que já não estarão de acordo comigo nas próximas conclusões. Pois penso que se a social-democracia precisa fugir da concepção mecânica de revolução, a de que ela “faz” explosões revolucionárias e estabelece o momento de disparar sua eclosão, ela precisa esclarecer ao proletariado, com força redobrada e determinação, aquela linha política ampla de sua tática que só se torna compreensível se, desde o começo, a social-democracia também lhe explicar o ponto final dessa linha: a meta de tomar o poder político a fim de cumprir as tarefas da atual revolução. E isso, por sua vez, está intimamente ligado à concepção do papel recíproco da burguesia liberal e do proletariado na luta revolucionária. Vejo, porém, que o meu tempo se esgotou e que serei obrigada a parar no meio das explanações sobre as concepções na questão da relação com os partidos burgueses. Somente farei mais algumas observações gerais pro domo sua [ em defesa dos próprios interesses] que explicam em traços gerais a nossa posição em relação à totalidade das questões polêmicas neste Congresso. Os camaradas que defendem as concepções que acabo de analisar gostam de proclamar que precisamente eles, na social-democracia russa, são os representantes do verdadeiro marxismo. Em nome do marxismo e do espírito marxista, todos esses princípios são disseminados e essa tática é recomendada ao proletariado russo. Já a social-democracia polonesa desde o nascedouro cresce no solo da doutrina marxista. Em seu programa e sua tática, coloca-se entre os sucessores do fundador do socialismo científico, em especial da social-democracia alemã. Por isso, a referência ao marxismo sem dúvida tem para nós um valor especialmente elevado. Mas quando vemos essas formas da aplicação da doutrina marxista, essa inconstância e essas oscilações na tática, quando escutamos o lamento sentimental sobre as condições constitucionais-parlamentaristas e sobre as vitórias do liberalismo, essa busca desesperada por “pontos de partida” para a luta de classes em meio à grandiosa ascensão da revolução, essa andança de um lado para o outro em busca de meios artificiais, como os congressos de trabalhadores, para “mergulhar nas massas”, em busca de palavras de ordem artificiais para “detonar a revolução” quando ela amainou temporariamente, e essa incapacidade de aproveitá-la e estar determinado quando ela volta ao auge – quando se vê tudo isso, dá vontade de exclamar: camaradas! Em que emaranhado vocês transformaram a doutrina de Marx, que se caracteriza por flexibilidade mas também pela acuidade, mortal como lâmina de aço damasceno.

Vocês transformaram essa doutrina, que representa as asas da águia, num cacarejar preocupado de uma galinha que procura uma pérola no lixo do parlamentarismo burguês! Pois o marxismo contém dois elementos essenciais: a análise crítica e o elemento da vontade ativa da classe trabalhadora como fator revolucionário, e quem só quiser transformar a análise e a crítica em ação não representa o marxismo, mas sim uma miserável e pútrida paródia dessa doutrina.

Vocês, camaradas da ala direita, queixam-se muito da estreiteza, da intolerância, de um certo mecanicismo nas concepções dos chamados camaradas bolcheviques (gritos de “Dos mencheviques!”). Neste aspecto estamos totalmente de acordo com vocês (aplausos).

Acostumados a pensar mais ou menos em formas tiradas do movimento da Europa ocidental, os camaradas poloneses devem estranhar mais ainda do que nós essa específica inflexibilidade. Mas sabem, camaradas, como surgem todos esses traços desagradáveis? Para alguém que conhece a situação partidária interna em outros países, são traços muito conhecidos: é o típico rosto intelectual daquela vertente do socialismo que precisa defender o princípio da política de classe autônoma do proletariado contra outra tendência, igualmente forte (aplausos).

Inflexibilidade é a forma que a tática social-democrata assume necessariamente num dos polos quando, no outro, se transforma em gel viscoso e sem forma que vai em todas as direções sob a pressão dos acontecimentos (aplauso dos bolcheviques e uma parte do centro).

Nós, na Alemanha, podemos nos dar ao luxo de sermos suaviter in modo, fortiter in re – duros e inflexíveis, no que se refere ao núcleo da tática, flexíveis e tolerantes no tocante à forma. Podemos fazê-lo, porque o princípio da política de classes revolucionária do proletariado está de tal forma inabalavelmente enraizado entre nós, porque tem atrás de si uma maioria de tal maneira avassaladora do partido, que a existência e até a atividade de um punhado de oportunistas em nossas fileiras acaba sendo totalmente inócua; ao contrário, a liberdade de discussão e as diferenças de opinião são mesmo necessárias em vista do tamanho do movimento. Se não me engano, foram precisamente alguns líderes do marxismo russo que à época não conseguiram desculpar que nós, na Alemanha, fomos tão pouco inflexíveis que, por exemplo, não afastamos Bernstein das fileiras do partido. Mas vamos dirigir nosso olhar para o partido na França. Encontraremos ali – pelo menos foi assim ainda há alguns anos – uma situação bem diferente. O partido de Guesde8 não se notabilizou na época pela particularidade muito relevante de seu caráter inflexível? De que adianta, por exemplo, a declaração do nosso amigo Guesde – de que seus adversários tanto tentam se aproveitar – de que, no fundo, não há muita diferença para a classe operária se quem está no poder é o presidente republicano Loubet ou o imperador Guilherme? Não tinha o rosto dos nossos amigos franceses alguns traços típicos de inflexibilidade e impaciência sectárias, traços esses que assumiram naturalmente nos longos anos de defesa da autonomia de classe do proletariado francês contra o socialismo indefinido e “amplo” de todas as gradações? E mesmo assim não hesitamos nem um minuto – o camarada Plekhanov, à época, estava conosco – e nem duvidamos de que o cerne da verdade está desse lado e que foi necessário apoiar os guesdistas com todas as forças contra os seus inimigos. Da mesma forma vemos hoje a unilateralidade e estreiteza da ala esquerda da social-democracia russa como resultado natural da história do partido russo nos últimos anos e estamos convencidos de que esses traços não podem ser aniquilados por quaisquer meios artificiais, mas que só poderão se equilibrar quando o princípio da autonomia de classes e da política revolucionária do proletariado estiver suficientemente firmado e tiver vencido de modo definitivo entre as fileiras da social-democracia russa. Por isso, almejamos conscientemente garantir a vitória dessa política, não em sua forma bolchevique específica, e sim na forma em que foi concebida e é conduzida pela social-democracia polonesa – a forma que se aproxima mais do espírito da social-democracia alemã e do espírito do verdadeiro marxismo (aplausos).9

[Tradução: Kristina Michahelles]

* Discurso proferido no Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) em 1907, em Londres. Publicado em Gesammelte Werke 2, Berlim, Dietz, 1981, p.214-26.

1 No centro dos debates do POSDR e das divergências políticas entre bolcheviques e mencheviques estava a questão do posicionamento em relação aos partidos burgueses.

2 O partido constitucional-democrata (cadetes) foi fundado em outubro de 1905 e era formado prioritariamente pela pequena e média burguesia urbana, bem como pela intelligentsia urbana.

3 Em banquetes, congressos zemstwo e petições, a burguesia pedia reformas e uma constituição burguesa (N.T.: zemstwo é o nome da forma de administração local introduzida em 1864 por uma das reformas do tsar Alexandre II).

4 O governo tsarista baixou um decreto em dezembro de 1904 pelo qual prometia a ampliação dos direitos dos zemstwo, mas enfatizava a intocabilidade da autonomia e das leis constituintes. Ao mesmo tempo, o governo anunciou num decreto que reprimiria qualquer demanda por reformas e por uma constituição, responsabilizando judicialmente seus apoiadores.

5 F. A. Golowin foi o presidente da Segunda Duma, de abril a junho de 1907. P. B. Struwe foi o líder dos cadetes de direita.

6 O 6º congresso (de unificação) do POSDR se realizou de 23 de abril a 8 de maio de 1906 em Estocolmo.

7 Um homem que especula/ é como um animal em charneca seca/ guiado em círculo por um mau espírito/ e à volta só pasto seco.

8 Referência à vertente revolucionária marxista dentro do movimento operário francês sob liderança de Jules Guesde. Enraizada num primeiro momento, no Parti Ouvrier (Partido Operário), formou o Parti Socialiste de France (Partido Socialista da França) em 1901 junto com blanquistas e outros grupos. Em abril de 1905, esse partido de esquerda se juntou ao Parti Socialiste Français (Partido Socialista Francês), formando o Parti Socialiste (Section Française de l’Internationale Ouvrière (Seção Francesa da Internacional Operária).

9 “Nós reconhecemos que existe um grânulo de verdade na teoria dos camaradas bolcheviques escondida sob uma espessa camada de cisões.” Esta frase não foi registrada no texto do discurso (Observação da comissão de protocolo do Congresso do POSDR).