Problemas russos (1917)

Foto: Revolução Russa/ Editora Dietz – Fundação Rosa

Em um comentário sobre a revolução de fevereiro na Rússia, Rosa Luxemburgo enfatiza a ideia de que o proletariado russo, apesar de não ter organizações nem sindicatos, tem espírito de luta, e criará as organizações na luta, assim como fez na revolução de 1905; a palavra de ordem do momento é fim à guerra!

:: Ler “Problemas russos” em PDF 


Agora que a imagem da revolução russa e, principalmente, de sua obra surge claramente delineada apesar de todos os ingredientes encobridores e mistificadores dos interesses de jornalistas burgueses, é possível destacar, no emaranhado de detalhes, algumas linhas fundamentais dos colossais acontecimentos.

Neste momento, a Rússia volta a confirmar a velha experiência histórica: não existe nada mais improvável, impossível, fantástico do que uma revolução, ainda uma hora antes de sua eclosão, e não há nada mais simples, natural e óbvio do que uma revolução depois de ter passado pelo seu primeiro confronto e conquistado a sua primeira vitória. Por mais que a imprensa alemã viesse escrevendo há mais de um ano com muito zelo sobre agitações internas, crises e fermentações no império tsarista, a opinião pública, como a do mundo inteiro, neste momento está visivelmente sem fôlego diante do repentino espetáculo colossal da revolução russa. Ainda uma semana antes da sua eclosão teria sido possível listar mil razões contra a possibilidade deste evento. O povo oprimido pela guerra terrível, pela necessidade e pela miséria. As classes burguesas, curadas para sempre do sonho da liberdade pelas lembranças da revolução de uma década atrás, ainda por cima acorrentada ao tsarismo por planos de conquista imperialista. A classe trabalhadora desmoralizada em amplos círculos pelo furor nacionalista desencadeado pela guerra, dizimada pela sangria da guerra em sua melhor tropa socialista, estilhaçada pela ditadura dos sabres, sem organização, sem imprensa, sem liderança. – Assim como duas vezes dois dá quatro, foi possível comprovar em detalhes que na Rússia de hoje poderia haver explosões de desespero e anarquia, mas que uma revolução política moderna, com objetivos e ideais claros seria simplesmente impensável. E agora? Tudo mentiras, palavras, falatório! A revolução se legitimou pela única via em que, na história, todo movimento necessário se legitima: por meio de luta e vitória.

Dois traços mormente surpreendem a opinião pública europeia nos eventos russos: sua vitória rápida e o radicalismo já demonstrado desde o primeiro momento. Pois o governo provisório, formado por elementos burgueses lerdos, já se pronunciou em favor da república democrática, mas esses dois traços só podem arrebatar o olhar superficial do filisteu que nunca notou os laços históricos mais profundos entre hoje e ontem. Quem, no entanto, mantiver em vista que a revolução de março de 1917 não passa de uma continuação da revolução de 1905 a 1907, apenas atrasada pela contrarrevolução e pela guerra mundial, não pode se surpreender nem pela vitória rápida, nem pela sua ação decidida. Afinal, agora ela apenas emerge como fruto maduro dos esforços, confrontos e sacrifícios dos últimos dez anos do colo da sociedade russa, sendo assim uma prova consoladora de que nem uma única gota de sangue derramada nessa terrível década pelos nossos irmãos russos pela causa da liberdade e nem um dia de tortura no cárcere e na prisão sofridos por tantos camaradas russos foram sacrificados em vão. Eles mereceram e pagaram pela liberdade da qual usufruem agora.

O radicalismo cabal dos liberais russos, que subitamente passaram do programa constitucional mais desbotado para a república, assim como a adesão dos nacional- liberais russos e até mesmo dos conservadores a essa guinada violenta para a esquerda, por outro lado, é uma surpresa apenas para o filisteu, para quem as palavras de ordem, os programas e as fisionomias, marcados pelo cotidiano parlamentarista, valem como verdades eternas. Quem conhece a história, no entanto, enxerga aqui apenas uma fiel repetição das vivências das revoluções inglesa, francesa e de março [1848], a saber: que em tempos turbulentos a postura de todas as classes e de todos os partidos depende do poder e da postura da classe mais radical, ou seja, a dos trabalhadores. Quanto mais ousados forem os seus objetivos, e quanto mais estiver disposta a colocar todo o seu poder para atingir esses objetivos, tanto mais para a esquerda será seguida por toda a falange burguesa.

Claro, os trabalhadores russos não dispõem de organizações nem de associações eleitorais, não têm praticamente sindicatos nem imprensa. Mas têm o que é decisivo para seu poder e influência: um espírito combativo jovem, uma vontade determinada e uma disposição ilimitada para o sacrifício pelos ideais do socialismo. Eles têm aquelas propriedades sem as quais a melhor organização não passa de traste sem valor e peso morto na perna da massa proletária. Claro, sem se organizar a classe trabalhadora não é capaz de agir por muito tempo. Por isso, estamos tão seguros como se pudéssemos ver com os próprios olhos que, neste momento, em São Petersburgo, em Moscou, em toda a Rússia os trabalhadores estão trabalhando febrilmente para criar organizações, associações políticas, sindicatos, institutos de formação, imprensa, todo o aparato. Assim como aconteceu há dez anos, agora também o primeiro gesto do proletariado revolucionário russo será correr contra o tempo para resolver todas as falhas da organização no menor prazo possível. E uma tal organização, nascida na luta e forjada no seu fogo, certamente provará ser a verdadeira blindagem do poder, não a camisa de força da impotência.

O caminho está claramente indicado para o proletariado russo na atual situação. Por mais forte e radical que precise ser ao representar as demandas políticas e sociais, cada uma dessas reivindicações, assim como toda a obra da revolução, está ligada principalmente à palavra de ordem: chega de guerra! Os trabalhadores russos precisam desposar a conquista da paz com toda a sua ação, e certamente o fazem já agora. Dessa maneira, no entanto, entram no primeiro grande conflito com a própria burguesia, numa aguda luta de classes contra o inimigo no próprio país.

O futuro haverá de mostrar se o proletariado russo, que certamente não temerá sacrifícios para sangrar nessa luta sozinho, será pela causa da paz, que é, ao mesmo tempo, a causa do socialismo internacional.

 

Der Kampf (Duisburg), nº 44, de 7 de abril de 1917

 

Tradução: Kristina Michahelles

* Publicado em Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke 4, Berlim, Dietz, 1987, p.255-57. O artigo é assinado por Gracchus, um dos pseudônimos de Rosa Luxemburgo.