Primatas (1914)
Foto: Rosa Luxemburgo/ Editora Dietz – Fundação Rosa
Rosa Luxemburgo polemiza com o famoso sociólogo Werner Sombart, citando uma passagem chocante de um artigo do ilustre sábio em que ele chama os japoneses de primatas, próximos dos cães. Rosa mostra como a guerra tirou toda aparência de civilidade da sociedade burguesa. Os sábios são de fato bárbaros.
“Um dos maravilhosos efeitos dessa grandiosa época é que nossos instintos voltaram a ficar mais claros e certeiros”. São essas as palavras iniciais de um ensaio do conhecido professor Werner Sombart publicado por esses dias no jornal Berliner Tageblatt sobre “nossos inimigos”. Estes últimos são argutamente identificados com ajuda dos instintos claros do professor que os coloca na balança, um depois do outro, concluindo que apenas três grandes povos – os franceses, os russos e, principalmente, os ingleses – merecem o seu ódio ou, pelo menos, o seu respeito. Os outros povos contra os quais soldados alemães lutam neste momento em sangrentos campos de batalha, para o professor, sequer seriam dignos do seu ódio.
“Os pequenos”, escreve o professor, “incluindo o Japão, nem contam. Se Mônaco nos declara hoje a guerra e amanhã, o Marrocos, será impossível, para nós, perceber tais agrupamentos artificiais como corpos coletivos. Assim, os sentimentos individuais poderão oscilar em relação a esses inimigos colaterais. Pessoalmente, vejo o reino de Montenegro como uma piada de mau gosto da história universal. Considero a Bélgica um aborto da política, e a nacionalidade belga, para mim, tem uma conotação cômica. De resto, só podemos ter pena dessa gente. Os sérvios e os japoneses evocam um sentimento de repugnância e de repulsa, e não posso deixar de imaginar que sujaríamos armas honestas se lutássemos contra esses povos. Os sérvios, esses conhecemos mais como comerciantes de ratoeiras e estudantes, além da sua história de regência indizivelmente suja. Os japoneses, com quem lido mais enquanto professor acadêmico, mesmo antes da guerra nunca enxerguei como pessoas, e sim como primatas com boa capacidade de aprendizagem. Dificilmente seremos capazes de nutrir um sentimento humano em relação a eles. Certamente, tampouco o ódio. Pois não se ‘odeia’ um cão que morde a sua canela na rua, mas nos contentamos em surrá-lo”.[1]
Diga-se de passagem que o erudito professor provavelmente se esqueceu, para informar-se sobre os “primatas”, de ao menos consultar um manual de geografia, caso contrário não teria colocado ao lado de Mônaco e Montenegro um país cujo território equivale a quatro quintos do Reich alemão e cuja população é de mais de 50 milhões de pessoas – portanto, uma potência, para parâmetros europeus. Mais importantes, no entanto, são os “instintos puros” de um representante do mundo acadêmico burguês, que podem se esbaldar num jornal da intelligentsia burguesa.
A guerra mundial colocou muitas coisas, circunstâncias, conceitos e relações de ponta-cabeça. Mas assim, a história, enquanto crítica contumaz em períodos revolucionários costuma fazer, endireitou-as e as colocou de pé. Ao subverter tudo, a guerra só mostra que era falsa a aparência de coisas que até então tinham valor. A guerra nos mostra hoje classes e condições de vida como elas são, de acordo com sua natureza ou o grau de desenvolvimento atingido, e não como as costumamos ver por baixo da máscara da tradição e da mentira convencional em tempos de paz. Arranhem um pouco o russo e encontrarão o bárbaro, diziam antigamente, arranhem um sábio, um artista, um poeta hoje na Alemanha, e o que encontrarão? Sob o fino verniz da ética intelectual há um desprezo cru por povos inteiros, flui a gosma do ódio por milhões de pessoas que falam outra língua e têm outra cor da pele. O que são bárbaros? Hoje, estamos acostumados a imaginar pessoas que comem criancinhas em território inimigo, violentam moças ou furam olhos dos feridos. Os gregos antigos que cunharam a palavra compreendiam que bárbaros eram povos que eles não conseguiam entender por causa do dialeto estrangeiro. A expressão visava principalmente os povos germânicos, cujos sons brutos batiam no ouvido grego de maneira incompreensível. “Bárbaros são sempre os outros”: na antiguidade, isso significava estar privado de qualquer compreensão do outro. Nesse sentido mais elevado grego, todos os sábios que ainda ontem discursavam nos banquetes internacionais em homenagem à sublime ciência e hoje pregam o desprezo por povos estrangeiros, os poetas que ainda ontem cantavam o amor, o luar e as flores do campo e hoje tocam em suas harpas acordes enferrujados para acompanhar o sangrento ódio aos povos, todos são bárbaros que foram privados do entendimento dos costumes e formas de cultura estrangeiros para a comunhão espiritual da humanidade. Mas dessa comunhão nasceu e se inflamou toda chama da ascensão e da libertação humana. A Renascença, a Reforma e o Humanismo no final da Idade Média, a grande revolução do espírito na filosofia antes da grande revolução das coisas na França, a própria revolução e seus ecos em 1848, tudo isso foi internacional, gerado por diferentes nações e sustentado por elas. As ideias dos maiores intelectos do mundo burguês, de um Kant e de um Goethe, de Shelley, Darwin e Livingstone, Condorcet, Voltaire e Rousseau floresceram em torno da ideia universal da solidariedade humana, da comunhão cultural de tudo o que tem rosto humano. Mesmo a última ideia progressista nascida dos interesses do bolso da burguesia, o liberalismo mercantil, cobriu seu lema cru da livre concorrência com o insuficiente véu teórico de uma solidariedade natural dos interesses, não apenas entre os indivíduos, mas também entre as nações.
A tempestade imperialista rasgou esse último véu dos ideais humanitários burgueses. O que lemos hoje diariamente nas confissões de eruditos alemães e artistas a respeito do evangelho do ódio entre os povos é apenas uma súbita erupção da reação interior de uma ordem social que perdeu toda a crença em seus antigos ideais da juventude e encontra na violência bruta seu único direito de viver. Essas confissões atestam que não são milhões de pessoas da humanidade asiática e africana, e sim algumas dúzias de ideólogos que se tornaram uma espécie de primatas que revelam uma decadência inédita na acrobacia mental e na capacidade para o adestramento. O fato de a cultura burguesa falar de si mesma nas confissões dos Sombart, Dehmel, Haeckel[2] e outros é uma sentença histórica. Nossos obuses de 42 centímetros não destruíram apenas os fortes de Liège e Antuérpia, mas também os últimos bastiões da ideologia burguesa. Os rastros assustam. O exemplo dos Sombart e outros, que odeiam e desprezam povos estrangeiros, é o melhor sinal de alerta para o proletariado que tem consciência de classe. A ideologia decadente de uma classe dominante jamais poderá se tornar a ideologia de uma classe em ascensão.
Sozialdemokratische Korrespondenz (Berlim), nº 115, 6 de novembro de 1914
Tradução: Kristina Michahelles
* Publicado em Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke 7/2, Berlim, Dietz, 2017, p.911-13. Este texto não é assinado, mas Rosa Luxemburgo com certeza é a autora, pois Mathilde Jacob anotou as iniciais RL em seu exemplar.
O número 1 da revista Sozialdemokratische Korrespondenz (SK) foi publicado em Berlim no dia 27 de dezembro de 1913 com o artigo Arbeitslos! [Desempregado!] de Rosa Luxemburgo (ver Rosa Luxemburgo, Textos escolhidos, volume I, São Paulo, Editora UNESP, 2017, p.473-77). A SK foi anunciada no dia 17 de dezembro de 1913 por Julian Marchlewski, Rosa Luxemburgo e Franz Mehring, depois do rompimento com a redação do jornal Leipziger Volkszeitung. No início de outubro de 1913, um artigo crítico de Rosa Luxemburgo, Nach dem Jenaer Parteitag (Depois do congresso do partido em Jena), encontro durante o qual houve violentas discussões com e sobre Rosa Luxemburgo, foi recusado, com ofensas, pelo redator-chefe do jornal Leipziger Volskzeitung, Julian Marchlewski (ver Gesammelte Werke 3, p.243 ss e p.358 s.). Em 1913/1914, a SK era publicado três vezes por semana, e de janeiro a maio de 1915 só uma vez por semana com o Panorama econômico (Wirtschaftliche Rundschau) de Julian Marchlewski.
Desde o início da Primeira Guerra Mundial com o estado de sítio e censura à imprensa, Rosa Luxemburgo não assinou mais seus artigos para a SK, para não dar motivos de queixa por parte das autoridades policiais e militares.
Felizmente, muitos números da SK foram conservados graças a Mathilde Jacob, a qual anotou à mão as iniciais dos autores. Sabe-se que ela datilografou os manuscritos de Rosa Luxemburgo, Franz Mehring e Julian Marchlewski para a revista. Sua coleção da SK foi doada por volta de 1940/41 à família de Fritz Winguth em Berlim e desde os anos 1980 está em mãos de particulares. Existem cópias nos Hoover Institution Artchives em Stanford, Califórnia (EUA), nos Rosa Luxemburg and Mathilde Jacob Papers e com Ottokar Luban em Berlim. Sobre a análise desses documentos ver Ottokar Luban, Erstmalig identifizierte Artikel Rosa Luxemburgs in den Kriegsnummern der Sozialdemokratischen Korrespondenz [Artigos identificados de Rosa Luxemburgo na Sozialdemokratische korrespondenz] (agosto a dezembro de 1914), in: Rosa Luxemburg im internationalen Diskurs [Rosa Luxemburgo no discurso internacional], Internationale Rosa-Luxemburg-Gesellschaft em Chicago, Tempere, Berlim e Zurique (1998-20000. Org. por Narihiko Ito, Annelies Laschitza e Ottokar Luban, Berlim 2002, p.276 e seg.; idem Mathilde Jacob – mehr als Rosa Luxemburgs Sekretärin [Mathilde Jacob, mais do que secretária de Rosa Luxemburgo].In: Rosa-Luxemburg-Forschungsberichte, caderno 6, Leipzig 2008, p.196 e seg., especialmente p.210. Ver também Hannah Lotte Lund: “Ich umarme Sie mit grossser Sehnsucht!” [Abraço-a com muita saudade”], correspondência entre Rosa Luxemburgo e Mathilde Jacob. In: Elke-Vera Kotowski, Anna-Dorothea Ludwig, Hannah Lotte Lund: Zweisamkeiten. 12 aussergewöhnliche Paare in Berlin, Berlim 2016, p. 89 e seg.
[1] Ver Werner Sombart: Unsere Feinde. In: Berliner Tageblatt, número 557 de 2 de novembro de 1914.
[2] Alusão ao apelo ao mundo cultural de outubro de 1914, lançado por 93 intelectuais e artistas burgueses alemães, entre eles Richard Dehmel e Ernst Haeckel, que, invocando o legado de Goethe, Beethoven e Kant, aceitavam as informações caluniosas sobre crueldades cometidas por soldados franceses e russos, repetiam as mentiras sobre a guerra de defesa, defendiam o fim da neutralidade belga, invocavam a suposta unidade do povo e elogiavam o militarismo alemão enquanto defensor da cultura alemã.