Mais socialismo
Foto: R.L. fala em Deutz / Editora Dietz – Fundação Rosa Luxemburgo
O socialismo científico ensina a nós, mulheres, que somente poderemos alcançar nossa plena libertação humana com o fim da propriedade privada dos meios de produção e dentro de uma ordem socialista. Sendo assim, torna-se nossa obrigação constante atuar em prol desse ideal, que é o objetivo historicamente dado do movimento operário. Aos proletários, por sua vez, o socialismo científico ensina que não serão capazes de alcançar essa meta sem o apoio consciente e ativo das amplas massas femininas. Fatos e mais fatos confirmam isso.
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O rápido e forte inchaço do trabalho profissional feminino obriga a mulher assalariada a respeitar sua colega e nela conquistar uma camarada na luta por condições dignas. Os tempos de paz entre as nações são preenchidos por lutas entre as classes. Essas lutas crescem em amplitude e força, afetando de maneira crescente tanto indivíduos quanto famílias, e só poderão ser levadas adiante pelas camadas mais pobres da população se também as mulheres reconhecerem as metas polêmicas e demonstrarem espírito de sacrifício.
O reconhecimento de que, a exemplo dos corais no fundo do mar, todos os gêneros devem construir para que a humanidade emerja das profundezas trevosas e atinja o sol da liberdade aumenta a consciência da responsabilidade dos pais. Mostra claramente à nossa alma que o socialismo não pode virar uma fórmula econômica e política ressequida, que só tem direito a existir na vida pública. Mostra que ele é uma concepção de mundo que agarra a pessoa inteira com a força irresistível de uma religião e determina a forma de conduzir a sua vida. É uma bela prerrogativa das mulheres levar o idealismo socialista para dentro do lar e, ali, vigiar a chama sagrada na qual se incendiará a melhor força vital da criança.
Lentamente – até demais, para a nossa ansiedade passional – começam a penetrar no proletariado todos os motivos para que o movimento dos trabalhadores também seja levado adiante com alegria e objetividade pelas mulheres. Nesse aspecto, a guerra mundial será um mestre severo para muitos que fecharam os ouvidos em tempos mais calmos. Desde que a guerra começou a derramar os horrores sobre os povos, ficou claro que a colaboração das mulheres nas organizações proletárias de todo tipo é mais do que útil e significativa: é simplesmente indispensável. De fato, como estariam hoje várias agremiações e vários sindicatos social-democratas se não contassem com uma categoria forte de sócias mulheres, treinada e pronta para trabalhar? A guerra obrigou centenas de milhares de homens organizados em termos sindicais e políticos ao ofício sangrento das armas. Agora é a vez das mulheres de cerrar as fileiras das associações proletárias com mais firmeza, salvaguardando sua existência, seu trabalho e êxito por meio de uma lealdade inabalável.
As contribuições não bastam, mesmo que atualmente representem, para muitos, um sacrifício bem maior do que comumente. Quantas famílias suspiram sob a “tirania da necessidade”, pois, tendo sido o pai arrancado e enviado ao front, perderam o principal provedor, sendo as possibilidades de remuneração para a mãe raras e incertas, quando não inexistem por inteiro! Mais do que nunca, é necessário realizar o trabalho de conscientização que mantém e faz crescer as organizações, tanto em seu acervo quanto em sua força vital. Trabalho de conscientização entre as amplas massas proletárias, feito por mulheres para mulheres. Para cada homem que serve no front, duas mulheres que queiram servir ao socialismo em casa: essa deveria ser a palavra de ordem. O pulso da vida intelectual e prática das associações proletárias não pode parar nem se tornar mais fraco ou mais lento. As camaradas devem acrescentar ao trabalho anterior aquilo que antes era feito pelos camaradas, devem colocar a maior quantidade de seu saber, poder e querer a serviço das organizações, com estímulo, com ações. Pois o seu círculo de influência foi bastante ampliado pela prática da solidariedade proletária.
Não mereceríamos ter alimentado a alma ávida por uma nova humanidade nas fontes do socialismo e, nelas, ter sorvido nova vida, se isso e algumas outras coisas bastassem para o que a hora exige de nós. Tudo o que fizermos para a organização e por meio dela deve ser como uma tigela cheia até a borda com o espírito socialista. Só assim ele recebe seu verdadeiro sentido e sua consagração suprema. Não permitamos que a concepção socialista seja conspurcada pela necessidade de um tempo que a política universal capitalista criou para todos os Estados modernos, incluindo os neutros, 3[1]
O começo e o fim para as organizações proletárias deve ser a meta final socialista: a libertação da classe trabalhadora enquanto obra dos proletários unidos de todos os países. Essa meta será nosso parâmetro para todos os interesses e tarefas da atualidade, ela nos orientará em meio aos acontecimentos e aos ânimos do momento. Se pudéssemos recusar, arrogantes, essa verdade, a guerra mundial que causa confusão e decomposição entre o movimento dos trabalhadores nos advertiria de que jamais devemos perdê-la de vista. Não nos deixemos ludibriar: esse retrocesso seria impossível se tanta gente organizada em termos políticos e sindicais não tivesse parado de olhar gradativamente para essa meta socialista como sendo o sol que fornece luz e calor para o trabalho prático do dia a dia e cuja força determina e regulamenta os processos das associações proletárias.
Algumas circunstâncias, somadas, fazem com que as mulheres imbuídas do socialismo sintam de maneira forte e imediata o seu conteúdo profundo como concepção de mundo e de vida. Quantas, entre elas, não evoluíram para uma vida nova e nobre a partir dos ideais socialistas! O que, num primeiro momento, era compreendido de forma mais instintiva e sensitiva, acabou esclarecendo e aprofundando a luta séria por conhecimento e ação. Retribuamos ao socialismo tudo o que lhe devemos. Não apenas em volume e quantidade, mas principalmente em conteúdo e valor socialista, a ação das mulheres, agora, precisa ser da mais elevada importância para o movimento dos trabalhadores.
Os acontecimentos que estão passando diante dos nossos olhos, sendo tocados a golpes de chicote pela guerra mundial em uma velocidade vertiginosa, clamam por ser examinados e honrados à luz da concepção socialista da história.
Além disso, a guerra e a trégua entre os partidos e o governo[2] (“Burgfrieden”) frearam as batalhas e os trabalhos políticos e restringiram os conflitos sindicais. Nós, mulheres, não devemos ficar paralisadas no objetivo de aproveitar a situação para esclarecer e consolidar as ideias socialistas. Quanto menos política – no sentido estrito, corporativista – tanto mais socialismo enquanto conhecimento histórico, ciência, concepção de mundo. As organizações, com sua vida multifacetada, oferecem às mulheres milhares de oportunidades de servir ao socialismo mesmo em serviços aparentemente pequenos, enobrecidos pelas suas claras relações com ele. É o caso de construir diques firmes no sentir e no pensar dos organizados, em que as ondas da enchente imperialista se quebrem e atrás dos quais os ideais socialistas possam viver em segurança. Na mesma direção, as mulheres devem influenciar a imprensa operária. Raros são os eventos em que não é lembrado que são as mulheres, com sua simpatia e ação, que estão por trás dos órgãos de imprensa e cuidam de sua distribuição. Depende das camaradas usar seu poder para reconduzir os jornais do partido em toda parte para a clara defesa dos princípios socialistas. É um segredo de polichinelo dizer o quanto isso é necessário em alguns lugares.
Mas também precisamos de mais socialismo enquanto concepção de vida. Assim como o crente mede os acontecimentos internos e externos de sua vida pessoal por suas convicções religiosas, o socialismo também deve nos fornecer parâmetros seguros para a nossa atitude em relação ao calmo mundo interior dentro do próprio peito e em relação ao nosso entorno. Não podemos nos contentar em fazer a profissão de fé do socialismo. Vivê-lo deve ser o nosso esforço ardente. Não permitamos que o voo da nossa alma rumo aos ideais socialistas seja paralisado pela influência do chamado “senso comum” de que vivemos num mundo capitalista e de que devemos agir segundo o provérbio “em Roma, como os romanos”. O chamado “senso comum” não é apenas um camarada bastante míope, mas também vil. No nosso caso, a sua “sabedoria” é solo fértil para a preguiça e a covardia. Com a mesma certeza com que a sociedade capitalista traz em seu colo as precondições materiais para a ordem socialista, também germinam e crescem nela as precondições intelectuais e morais para isso no sentir, no pensar e no querer das pessoas. E se não nos é dado erigir a sociedade socialista sob o peso do domínio do capitalismo, podemos antecipar nossa parte de liberdade humana futura ao sempre agirmos, fiéis e ousados, enquanto socialistas. Assim haveremos de construir uma ponte firme que conduz das organizações e da vida pública para o espaço pessoal individual. Só uma pessoa inteira pode ser também um socialista inteiro.
Que nós, mulheres, consideremos como nossa tarefa especial cuidar para que essa concepção seja vencedora. Mais socialismo no conhecimento e na ação, mais socialismo no movimento dos trabalhadores e na vida de cada indivíduo!
Die Gleichheit (Stuttgart), nº 10, 5 de fevereiro de 1915
[Tradução: Kristina Michahelles]
* Publicado em Gesammelte Werke 7/2, Berlim, Dietz, 2017, p.935-38. O artigo não é assinado, mas provavelmente Rosa Luxemburgo é a autora. Há referências nas cartas a Costia Zetkin e Mathilde Jacob escritas no início de fevereiro de 1915. Ela escreveu, p. ex., a Costia Zetkin antes de 6 de fevereiro de 1915: “O editorial para a mãe [Clara Zetkin] eu o espremi nas condições mais desfavoráveis, só para aliviá-la. Agora fico arrepiada com a “revisão” que ela terá que fazer.” (Gesammelte Briefe 5, Berlim, Dietz, 1984, p.41).
[1] 3 e 4: espaços criados por intervenções ou proibições da censura.
[2] O termo “Burgfrieden” designa a trégua política entre os social-democratas e outros partidos alemães com o governo durante a Primeira Guerra Mundial. Sindicatos deixaram de realizar greves, o SPD votou a favor dos créditos de guerra no Reichstag e, em geral, os partidos deixaram de fazer oposição ao governo (NT).