A solução da questão (1905)
Foto: Revolução Russa / Editora Dietz – Fundação Rosa Rosa
De maneira viva e didática, Rosa Luxemburgo pinta um quadro das manifestações na Rússia e de como a revolução, no seu trabalho de educação política, atrai os soldados, filhos do povo, para o seu lado.
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A causa da revolução avança marchando com uma lógica férrea no império dos tsares. É quando começa a fase das revoltas camponesas[1]; portanto, a Revolução finca sua bandeira na planície. Até agora, desde o início do período revolucionário, os camponeses russos estavam calados.
O proletariado industrial – influenciado, durante uma década e meia, por um incansável trabalho de conscientização pela social-democracia – surgiu em primeiro lugar, seguiu sendo o único portador da poderosa revolução e, traças à sua posição entre as classes sociais, tem a vocação de ser a parte mais clara, determinada, ousada e, por isso, na liderança do crescente exército revolucionário na Rússia.
Em terra e no mar, os militares se bandearam para a causa do proletariado urbano, ainda antes da massa camponesa. A memorável rebelião do Potemkin[2] no mar Negro, em seguida o levante dos marinheiros em Kronstadt[3], diante dos portões da residência tzarista, logo depois a rebelião das tripulações na distante Vladivostok[4], em Charbin[5]: eis uma série de explosões que evidencia toda a marinha russa – no sul, no norte e no leste – em agitada fermentação.
Em todos esses lugares, não se tratou de erupções indômitas de emoções selvagens e pouco nítidas de uma turba bêbada, como costumam mentir as agências telegráficas oficiosas russas, tentando angariar a crença submissa da nossa imprensa burguesa, sobretudo entre os folhetins liberais. Não: foi o espírito do iluminismo político, da consciência proletária, a obra da educação social-democrata que encontrou expressão em todos os chamados “motins” da marinha russa. Tanto no Potemkin quanto em Kronstadt eram social-democratas organizados que estavam na vanguarda do movimento; as reivindicações formuladas de maneira clara e precisa, de caráter absolutamente político e, ao mesmo tempo, proletário, conferiram às rebeliões em todos esses casos a marca de uma ação totalmente consciente de classe e revolucionária. E se incêndios criminosos, assassinatos, bebedeiras e saques acompanharam todos esses levantes como sombras escuras, já ficou provado abertamente diante do mundo inteiro que foi a corja de bandidos do tsarismo a qual, liderada por padrecos e pela polícia, tentou sufocar o levante revolucionário das equipes da marinha, bem como dos operários das indústrias nas cidades, em uma onda de crime, por meio da incitação sistemática do lumpenproletariado. Assassinatos, incêndios criminosos e saques não foram obra dos marinheiros “amotinados”, e sim dos “suportes da ordem” do absolutismo na luta contra os marinheiros.
Mas o germe da revolução amadurece a cada hora que passa não apenas na marinha, e sim também nas tropas terrestres do último Nicolau. O exército falhou várias vezes já durante as tentativas do absolutismo de reprimir com armas o levante dos marinheiros. Os regimentos enviados a Kronstadt para trucidar as tripulações da marinha se renderam por duas vezes. Várias vezes os soldados se recusaram, durante as manifestações, a obedecer às ordens nos confrontos com os proletários. Em Moscou, durante o memorável e grandioso enterro do social-democrata Bauman[7], assassinado pelos facínoras tsaristas, entre as cerca de 200 mil pessoas que marcharam durante a manifestação havia muitos militares; um grupo de oficiais de patente mais elevada com seus sabres polidos formaram a guarda de honra em torno do gigantesco estandarte da social-democracia na ponta do cortejo; e no cordão vivo de pessoas dos dois lados da procissão, trabalhadores, estudantes, mulheres, soldados e oficiais se deram as mãos. Não só entre as fileiras do “povo comum”, mas também em círculos de oficiais a parte progressista revolucionária ergue sua voz cada vez mais forte contra os facínoras criminosos do tsarismo. De forma geral, o exército, ocupado por uma agitação febril da social-democracia, torna-se a cada dia menos confiável e útil enquanto apoio da dominação absolutista.
Com isso surge a solução de uma das principais questões táticas, que costuma causar grande dor de cabeça aos calculistas oportunistas da luta de classes, tanto aqui na Alemanha quanto em qualquer outro lugar. Como pode qualquer ação de massa da moderna classe trabalhadora, ainda que apenas uma série de manifestações de rua, uma greve, contar com êxito, se sempre enfrentamos a muralha rígida do militarismo, as baionetas de aço, contras as quais nós, o proletariado indefeso, somos totalmente impotentes? É o que costumam nos gritar aqueles que não conseguem imaginar uma ação de massa de proletários de outra forma do que no ambiente rígido, na atmosfera fria do calmo cotidiano parlamentar. Eles sempre se esquecem que uma ação séria de massa do proletariado não pode acontecer senão dentro de uma situação revolucionária que, ela própria, já levou toda a massa do povo e o país inteiro a fermentar. Se isso é o caso, a “muralha rígida das baionetas” aparece em uma nova perspectiva, pois nos momentos revolucionários em que a causa do proletariado em luta se torna a causa de todo o povo trabalhador, de todos os explorados e oprimidos, também no soldado desperta o cidadão, o filho do povo, o proletário. Aqueles que opõem o atual exército, enquanto poder inimigo imutável, à revolução do povo, esquecem que a revolução atrai o próprio exército para o seu turbilhão; esquecem, por trás do barulho externo da luta da revolução, o seu principal lado, importante em termos sociais e históricos: a obra educativa política da revolução. E ela não é feita apenas na massa do proletariado, em amplas camadas do campesinato, da pequena burguesia, mas também naquela parte da massa popular colocada “no uniforme do rei”.
Os acontecimentos russos mostraram mais uma vez que a revolução, a qual levanta novos problemas políticos e sociais, ao mesmo tempo traz em si a solução desses mesmos problemas. A revolução russa, portanto, é, mais uma vez, uma advertência aos que não acreditam e aos calculistas tíbios em nossas próprias fileiras, como também um alerta às classes dominantes, que, por meio de ordens militares e de flotilha sempre renovadas, chamam também entre nós ao palco social espíritos que eles próprios não saberão exorcizar.
Die Gleichheit (Stuttgart)
Ano 15, 1905, nº 24, p.139.
* Publicado em Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke 1/2 , p.619-22.
[1] No outono de 1905, sob a influência da luta revolucionária dos trabalhadores na Rússia, o movimento camponês também atingiu uma dimensão inédita. Em outubro houve 219 levantes no campo, número que cresceu para 796 em novembro e 575 em dezembro.
[2] No dia 27 de junho de 1905 irrompeu um motim de marinheiros no encouraçado russo Potemkin, representando a primeira ação revolucionária de massa no exército e na flotilha tzaristas. No dia 8 de julho, os rebeldes emigraram para a Romênia, quando a situação se tornou sem perspectiva para eles.
[3] Nos dias 8 e 9 de novembro, marinheiros e soldados se levantaram em Kronstadt. A rebelião foi sufocada, e 1500 marinheiros, bem como algumas centenas de soldados, foram condenados à morte por um tribunal militar. Uma greve de solidariedade dos operários de São Petersburgo salvou os condenados do fuzilamento.
[4] Nos dias 12 e 13 de novembro de 1905 irrompeu uma rebelião de marinheiros em Vladivostok, que foi facilmente reprimido pelas tropas tzaristas, uma vez que entre os participantes do levante havia poucos marinheiros com consciência política.
[5] Uma manifestação dos trabalhadores ferroviários, de funcionários e de soldados em Charbin, em 5 de novembro de 1905, deslanchou um movimento revolucionário também nas unidades do exército.
[6] O bolchevique N.E. Bauman foi assassinado em 31 de outubro de 1905 por um agente da Ochrana durante uma manifestação organizada pelo POSDR. Seu enterro se tornou uma enorme manifestação política.