Foto: Soldados bolcheviques em Moscou, em1917 / Editora Dietz – Fundação Rosa Rosa

Revolução armada em Moscou (1906)

Foto: Soldados bolcheviques em Moscou, em1917 / Editora Dietz – Fundação Rosa Rosa

 
Uma descrição muito viva da insurreição em Moscou no fim de 1905, derrotada por um “exército” de milícias voluntárias, uma vez que os soldados haviam deixado de ser confiáveis para o tsarismo.

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Só agora é possível criar uma imagem do decurso da luta em Moscou; não com base em telegramas inventados das agências governamentais ou para-oficiais, mas sim em relatos daqueles que participaram da luta ou foram testemunhas oculares. É natural que as organizações revolucionárias em Moscou tenham agora tarefas mais importantes do que escrever a história do movimento. Mas chegam-nos informações com as quais tentaremos fazer uma avaliação desse grande acontecimento.

A ação começou com uma convocação para a greve geral que havia sido aprovada pelo conselho dos deputados dos trabalhadores, do partido social-democrata e do comitê dos socialistas revolucionários.[1] A greve geral foi marcada para a tarde de quarta-feira, 20 de dezembro [de 1905], na tentativa de, ao mesmo tempo, transformar essa greve em luta armada. A greve começou com uma solidariedade extraordinária; de um momento para o outro, todas as fábricas e oficinas pararam, as lojas cerraram as portas, o trem deixou de funcionar, com a única exceção do entroncamento da estação de Nicolaiévski.[2] Dessa vez, nem se poderia dizer que teria sido preciso fazer piquetes, pois todo o povo trabalhador parou imediatamente. Logo depois das reuniões, os trabalhadores se dispersaram com suas bandeiras vermelhas e o canto revolucionário nos lábios. Durante todo o tempo, a greve foi geral.

No dia 21 de dezembro, o movimento atingiu as ruas. Em todas as partes da cidade havia reuniões, discursos, manifestações de rua. Cossacos e dragões caíram sobre os manifestantes, porém só atiraram para cima. No fim da tarde, uma multidão de 12 mil pessoas se reuniu no teatro Aquarium. O exército cercou o teatro. Uma parte das pessoas se dirigiu para as portas de saída, mas foram rechaçadas a golpes de baioneta pelos soldados; uma multidão bem maior rompeu o cerco do jardim do teatro e penetrou no pátio interno da escola Komissarovski. Ali, as pessoas ergueram barricadas e só se dispersaram na manhã seguinte. Na ocasião, 70 pessoas foram presas, umas 10 mil tiveram seus nomes anotados pela polícia antes de serem soltas novamente. Algumas dúzias de revólveres foram confiscados.

No dia 23 de dezembro, umas 500 pessoas participaram da reunião na casa Fidler.[3] Às 10 horas o exército cercou o prédio. Os reunidos foram instados a entregar suas armas e a se dispersar, mas se recusaram e começaram a atirar no exército; o exército bombardeou o prédio, os revoltosos revidaram com bombas. Às três da madrugada os revolucionários se renderam: 8 mortos, 30 feridos. Foram detidos 120 membros do grupo de luta e alguns membros do comitê do partido, foram confiscadas muitas armas e 13 bombas.

Nesse meio tempo, já no dia 23 de dezembro, começou a construção de barricadas. As primeiras trincheiras foram erguidas nas praças Strastny e Starotriumfalny. Ainda eram ruins, a cavalaria e a infantaria atiraram nelas e as destruíram rapidamente. Naquele dia, no fim da tarde, houve confrontos na rua Twerskaja. O grupo de luta cortou os cabos do bonde elétrico e erigiu cercos a fim de deter as patrulhas de cossacos e dragões, ao mesmo tempo começou a construção de barricadas sobre esses obstáculos com tábuas, placas, barris, caixas, ferro velho e arame farpado. Postes de telégrafos foram derrubados e paralelepípedos arrancados da praça mais próxima. Essas barricadas conseguiram ser mantidas durante um pouco mais de tempo. No dia seguinte, 23 de dezembro[4], surgiu uma série de barricadas relativamente estáveis, o exército precisou do dia inteiro para tomar uma depois da outra. Na noite de 23 para 24 de dezembro o exército se retirou. Estava claro que havia se recusado a cumprir ordens. Os revolucionários aproveitaram o momento para refazer as barricadas antigas, tomadas pelo exército, erigindo várias outras, de modo que, pela manhã, alguns bairros estavam totalmente entrincheirados, sem nenhuma saída livre. No dia 24 de dezembro o exército começou a atirar nas barricadas com canhões, mas logo que a artilharia conseguia destruir e conquistar uma trincheira, alguns passos adiante, na mesma rua, já topava com outra que também precisava conquistar. As barricadas surgiam com uma rapidez espantosa. Por isso, o exército só conseguiu eliminar as barricadas em duas ruas até o fim do dia, uma na rua Sadovaja e outra na rua Neglinnaja.

No dia 25 de dezembro parte considerável da cidade estava tomada por barricadas. As novas foram construídas com grande destreza. Eram cercadas por um fosso e fortificadas, porque todos os objetos eram envoltos com arame. Vagões de bonde, trenós, carruagens foram jogados por cima. Também foram feitas trincheiras de neve, sobre as quais se jogava água para que endurecessem mais rápido; a neve era buscada nos jardins e nos pátios e trazida em sacos e panos. Essas trincheiras resistiam a saraivadas de balas continuadas. O trabalho com as trincheiras não parou nos dias seguintes. Dez mil mãos de trabalhadores trabalhavam febrilmente, e no dia 28 de dezembro essa área, totalmente ocupada pelos revolucionários, abrangia cerca de dez verstas.[5]

Essas trincheiras tinham uma dupla função: deter o movimento do exército e funcionar como pontos de resistência para os agrupamentos de revolucionários armados. A tática, de acordo com as informações de que dispomos, era a seguinte: os defensores das trincheiras atiravam salvas sobre o exército que se aproximava, depois se dispersavam, começavam a atirar de dentro das casas, dos muros e dos cercos; quando, finalmente, a barricada era destruída, os grupos de luta tomavam uma nova barricada que havia sido erigida mais atrás, na mesma rua, e o mesmo jogo recomeçava.

Como se portou o exército? Segundo os relatos até agora, a situação se deu da seguinte maneira: uma parte do exército se mostrou “insegura”; esses regimentos eram trancados nas casernas, tendo que entregar as armas, e armas mais pesadas foram levadas para as casernas. Os seguintes fatos são relatados: houve forte revolta entre os granadeiros no regimento Parnóvski, estes se dirigiram ao comandante em uma carta explicando que “caso haja um oficial que ouse nos usar para atirar nos nossos irmãos, saiba que a primeira bala acertará a sua cabeça”. No dia 20 de dezembro aconteceu uma reunião dos soldados estacionados nas casernas no Kremlin. Na reunião foram feitas reivindicações de ordem econômica e foi decidido não atirar no povo sob hipótese alguma. No dia 22 de dezembro o regimento da artilharia saiu da caserna de Alexandre com uma banda que entoou a Marselhesa. O general Malakov mandou que cossacos e dragões encurralassem o regimento. Os soldados colocaram suas reivindicações econômicas na mesa, o general prometeu cumpri-las e pediu que os soldados voltassem para a caserna.

Mas aquela outra parte do exército escolhida pelo governo entre os soldados dos diferentes regimentos, e que foi enviada contra o povo revolucionário, foi bestial ao extremo e praticou a barbárie mais selvagem e sem sentido. Por exemplo, abria fogo em ruas em que nem havia barricadas, ferindo e matando dúzias de pedestres que passavam por acaso, mulheres e crianças. Atirava contra casas que eram destruídas sem nenhum sentido. Um desses ataques do exército foi a destruição da gráfica de Sytin, sobre a qual a agência telegráfica, como sempre, espalhou só mentiras. Naquela edificação, um maravilhoso prédio grande com três fachadas para a rua, 600 combatentes ficaram entrincheirados, em sua grande maioria trabalhadores da indústria gráfica. O exército começou a bombardear o prédio de tal maneira, que os defensores se retiraram e conseguiram fugir pelo pátio do prédio ao lado. Mesmo assim, o exército continuou o ataque, depois os soldados incendiaram o prédio e impediram os bombeiros de extinguir o fogo. Mas, como assegurou o correspondente do Russkoje Slowo, os moradores do prédio foram salvos pelos combatentes. Já a agência noticiosa relatou que o prédio tinha sido incendiado pelos combatentes, que foram responsáveis pela morte de muitas famílias que moravam ali. Assim se constrói a opinião que interessa aos facínoras do governo![6]

Relatam-se milagres sobre a coragem heroica dos combatentes, sobre os feitos heroicos tanto de homens quanto de mulheres e até mesmo de crianças. O correspondente de Molwa indica que o número de vítimas teria chegado a 200 mortos e 1800 feridos até o dia 28 de dezembro.

E agora, depois de doze dias de terríveis lutas, “a ordem voltou a ser restaurada”. O primeiro avanço da revolução armada foi abatido, o exército tsarista o abafou, depois de receber um enorme reforço. A luta foi desigual: de um lado, um punhado de revolucionários mal-equipados e despreparados para o enfrentamento armado. Do outro, a dominação tsarista, aquela poderosa dominação que pode dispor de forças imensas. Mas quem foi o verdadeiro vencedor? A autoridade tsarista, que encharcou Moscou com sangue, ou os revolucionários, que deixaram centenas de mortos atrás de si no campo de batalha? A dominação tsarista venceu um punhado de combatentes armados, mas os rios de sangue derramados em Moscou não fortalecem o poder dos dominadores tsaristas, antes, solapam-no. Sobretudo, o poder não venceu com ajuda do exército, e sim unicamente com ajuda dos canhões, por temer o contato do exército com o povo. Impressionados com o santo entusiasmo dos combatentes, com o heroísmo desmedido dos trabalhadores, das mulheres e mesmo das crianças, os soldados poderiam parar e se bandear para o lado do povo. As autoridades governamentais preferiram mantê-los presos nas casernas, depois de desarmá-los. E só com voluntários de vários departamentos e bestas selvagens conseguiram montar seu “exército” contra a revolução. Mas em vez de seguir para a luta mais próxima com os soldados – porque, ao ver o povo, a mão do soldado poderia tremer, e a alma humana, vencer – preferiram a distância maior dos canhões, fazendo com que prédios fossem destruídos sem critério, matando pessoas inocentes nas ruas e até dentro de suas casas. Essa selvageria, junto com as crueldades mais hediondas de dragões e cossacos embriagados, acabou por revolucionar até mesmo a porção até aquele momento passiva e reacionária da população moscovita. Testemunhas atestam que mesmo os açougueiros, conhecidos por bater em estudantes e revolucionários, agora se tornaram revolucionários convictos. O tsar agora perdeu Moscou para sempre, assim como há quase um ano perdeu São Petersburgo.

Moscou provou que a luta armada revolucionária é possível e que o exército é um fator de insegurança. Dessa vez, o exército ainda deixou se prender dentro das casernas, mas não será possível detê-lo para sempre dessa maneira. O povo inteiro da Rússia está tomado pelo heroísmo da Moscou revolucionária, o eco de sua luta acende novas chamas de luta por toda parte, o eco também chegou ao exército, mas então não apenas mercenários brutos achados às pressas personificarão o exército.

O movimento se iniciou em janeiro [1905] e terminou dez meses depois com a capitulação da autocracia; desde os dias de dezembro se conta com um movimento cujo fim deverá marcar a eliminação da monarquia.

O tsar venceu, porque demandou um tributo em sangue dos combatentes de Moscou. O tsar perdeu, porque de cada gota desse sangue derramado surgirá um novo vingador da injustiça feita ao povo.

Czerwony Sztandar, nº 35, 3 de janeiro de 1906, p. 1-2

Tradução: Kristina Michahelles

* Publicado em Rosa Luxemburgo, Arbeiterrevolution 1905/06 – Polnische Texte, org. por Holger Politt, Berlim, Dietz, p.146-50.

[1] No jornal Vorwärts de 22 de dezembro de 1905, Rosa Luxemburgo escreveu: “o conselho dos deputados dos trabalhadores publicou seu jornal em que conclama para a luta imediata contra o governo, explicando que essa luta está firmemente decidida e tampouco será a última. O apelo diz ainda: ‘mas o governo usa seus últimos cartuchos: o exército e as finanças. O jogo começou! Aceitamos a luta pois o governo de Witte não é capaz de continuar seu jogo ambíguo. A proibição de jornais e as prisões mostram a intenção do governo. A reação de Witte antecipou o confronto. Que recaia sobre ele o sangue dos inocentes! Nós declaramos a greve geral! Luta até a última gota de sangue.’” Gesammelte Werke 6, p.832.

[2] Hoje, estação Leningradski. Até 1923, estação Nicolaiévski.

[3] A casa Fiedler, hoje na rua Makarenko, foi uma instituição de ensino, ponto de encontro tradicional das organizações revolucionárias. Ali se realizou, entre outros, o congresso do Conselho Moscovita dos Deputados dos Trabalhadores.

[4] A data está assim no original, embora deva tratar-se de 24 de dezembro.

[5] Antiga medida russa: 1 versta = 1,138km2

[6] Antes do ataque pelo exército, ali foi impresso o jornal do conselho moscovita dos deputados e trabalhadores sob a proteção dos revoltosos.