“Leio muito, também penso muito”

Rosa Luxemburgo como prisioneira política

Holger Politt, Varsóvia

I

Autorretrato de Rosa Luxemburgo, considerado perdido.

Rosa Luxemburgo foi presa pela primeira vez no fim do verão/começo do outono de 1904 quando teve que cumprir pena de três meses em Zwickau, na Saxônia, por “insulto a sua majestade”. A sentença foi proferida depois das apresentações na campanha eleitoral da Saxônia, em que Rosa Luxemburgo atacou em termos polêmicos uma afirmação do Kaiser Guilherme II, que se havia gabado publicamente de que em seu reinado os trabalhadores alemães levavam uma existência boa e segura. No discurso de defesa diante do tribunal, Rosa Luxemburgo enfatizou que nenhum social-democrata tinha a intenção de insultar o Kaiser, uma vez que os social-democratas combatiam instituições e não pessoas.

Foram conservadas algumas cartas que Rosa Luxemburgo, disfarçada, escreveu da prisão de Zwickau a seu companheiro na época, Leo Jogiches. Ela descreve assim a rotina diária atrás das grades: “Então: acordo às 6, recebo café às 7, 8-9 caminho, 12 almoço, 1-2 caminho, 3 café, às 6 jantar, 7-9 lâmpada, 9 dormir. Recebo o ‘Berliner Tageblatt’. Leio muito, também penso muito.”[1] Leo Jogiches pediu expressamente que lhe descrevesse a cela. Na resposta, o sutil traço auto-irônico de Rosa Luxemburgo vem plenamente à tona: “E ainda tenho de lhe descrever minha cela? Está pedindo demais, my darling. Onde eu poderia encontrar os pincéis e as tintas necessárias para representar tanta riqueza? Aliás, recentemente encontrei colado na parede um inventário hectografado de minha cela que, para meu grande espanto, relacionava uns vinte objetos nela existentes. E eu tinha certeza de que esta cela estava absolutamente vazia! Moral da história: sempre que uma pessoa se sentir verdadeiramente pobre nesta vida, deve se sentar e fazer um ‘inventário’ de seus bens terrenos, e só então descobrirá o quanto é rica.”[2]

Zamość, cidade em que Rosa Luxemburgo nasceu, em março.

Outra característica típica torna-se visível, pois Rosa Luxemburgo trancafiada continua a observadora excelente e altamente sensível de seu entorno, de que a carta a Leo Jogiches dá um bom exemplo: “Se posso trabalhar aqui? Claro, ao redor reina uma calma absoluta, exceto por uma tagarelice de crianças com um divertido sotaque saxão em algum lugar lá fora (não faço a mínima ideia do que há diante da minha janela) e um ativo grasnar de patos que, imagino, vem do lago do parque perto daqui. Todos esses patos devem ser do sexo feminino, pois não podem ficar ‘de bico fechado’ nem por uma hora, e mesmo durante a noite mantêm uma intensa conversação, escandindo o ‘qua, qua!’ num tom tão baixo da escala que, mesmo com toda a irritação que isso me causa, não posso deixar de rir.”[3]

II


Rosa Luxemburgo na prisão, em Varsóvia, em 1906.

Rosa Luxemburgo foi para trás das grades pela segunda vez, na prisão do tsar, ao ser traída e presa em Varsóvia, em março de 1906, em meio ao tumulto da Revolução de 1905/06. Ela chegou ilegalmente a Varsóvia no fim de 1905 para, junto com Leo Jogiches na liderança do seu partido polonês SDKPiL (Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia), lutar pela derrubada do regime tsarista, que considerava próxima. Ela não subia em barricadas, não era líder de greves, não fazia discursos públicos – sua única arma eficaz e afiada eram a pena e a palavra impressa. Mas em março de 1906, após ser detida e ir para a prisão, acalmou os espíritos aflitos em Berlim, que estavam naturalmente muito preocupados, pois ninguém, entre os camaradas do SPD, podia avaliar o que esperava Rosa Luxemburgo em Varsóvia nas condições de um regime tsarista em luta pela sobrevivência: “No domingo, dia 4, à noite, o destino me alcançou e fui presa. Já tinha obtido o visto em meu passaporte para a viagem de volta e estava em vias de partir. Bem, terá de ser assim. Espero que vocês não se aflijam com isso. Viva a Re…!, com tudo o que ela traz. (…) Minha cela, uma preciosidade nesta guarnição (uma cela simples comum, destinada em tempos normais a uma só pessoa), abriga catorze hóspedes, por sorte todos políticos. Junto da nossa há ainda duas grandes celas duplas, com cerca de trinta pessoas em cada, todas misturadas. E estas já são, segundo me dizem, condições paradisíacas; antes havia sessenta pessoas em apenas uma cela, que tinham de dormir em escalas, duas horas por noite, cada um, enquanto as outras ‘passeavam’. Agora dormimos todos como reis em camas de tábuas, de través, uns ao lado dos outros, como arenques, e tudo corre muito bem (…).”[4]

A brochura escrita na prisão de Varsóvia em 1906, “Sobre a Constituinte e o governo provisório”.

Como em Zwickau, ela procura trabalhar, tanto quanto as possibilidades permitem. No começo de abril, escreve a Luise e Karl Kautsky, depois de ser levada para outra prisão, em que as condições eram claramente melhores: “Há muito que não escrevo a vocês (…), porque fui aplicada e ontem terminei a terceira brochura desde o início de minha permanência aqui (duas logo sairão do prelo, a terceira será ‘contrabandeada’ em três dias). No alojamento anterior era impensável trabalhar, e por isso foi necessário recuperar aqui o tempo perdido. Também aqui tenho para meu uso pessoal apenas algumas horas da noite, das nove, mais ou menos, até as 2 horas; pois durante o dia, a partir das 4 horas da manhã, temos na casa toda e no pátio um espetáculo infernal (…).”[5]

Havia então planos muito avançados dos social-democratas poloneses para libertar Rosa Luxemburgo da prisão, mas eles malograram repentinamente porque, pouco antes da planejada libertação, a prisioneira, que desagradava ao poder tsarista, foi levada para o famigerado pavilhão X da Cidadela de Varsóvia, uma prisão especialmente protegida, quase hermeticamente fechada, exclusiva para os prisioneiros políticos na parte russa da Polônia. Ali, em setembro de 1905, fora executado Marcin Kasprzak, companheiro de luta próximo de Rosa Luxemburgo, que havia sido preso pela polícia tsarista em abril de 1904, quando montava uma gráfica ilegal em Varsóvia. No tiroteio que se seguiu quatro policiais morreram, o que levou à sua condenação com a pena capital. Rosa Luxemburgo assim se lembrava dele: “Quando a violência finalmente triunfou e chegou a hora de morrer, ele se despediu como só os grandes espíritos podem fazer. […] Um ano e meio de tortura nas casamatas assassinas da Cidadela de Varsóvia fez o resto.”[6]

Em 28 de junho de 1906, Rosa Luxemburgo foi libertada graças ao pagamento de uma fiança de três mil rublos, mas, como não teve permissão para deixar Varsóvia, é provável que tenha ficado provisoriamente com a família. Ela logo informou aos companheiros em Berlim: “Estou fisicamente muito abatida e, segundo me disseram, muito amarela, mas me sinto tão revigorada e ansiosa para trabalhar que espero esquecer logo todo o ‘amarelecimento’ e abatimento no trabalho. A situação geral é excelente, as condições estão ficando cada vez mais exacerbadas e conduzem violentamente a uma solução definitiva.”[7] Sua declaração lapidar ficou famosa desde então: “A revolução é magnífica, tudo o mais é bobagem!”[8] Depois de algumas semanas Rosa Luxemburgo foi finalmente autorizada a deixar Varsóvia para se tratar, mas tomou uma direção diferente da prescrita pelas autoridades: deixou Varsóvia passando por Petersburgo e a Finlândia para finalmente retornar à Alemanha no fim de setembro de 1906. No caminho, escreveu empolgada a Franz Mehring: “Agora me acostumei tanto com o meio revolucionário que tenho medo quando penso na volta à pacífica rotina alemã; receio não suportar por muito tempo… talvez então o senhor dê comigo uma escapada até Varsóvia, não?!”[9]

III

Rosa Luxemburgo foi presa uma terceira vez, depois que a Primeira Guerra Mundial já tinha coberto toda a Europa de eventos militares insanos. Em fevereiro de 1914 ela foi condenada, de acordo com uma decisão do tribunal de Frankfurt sobre o Meno, a um ano de prisão, porque em setembro de 1913, em reuniões públicas na cidade, havia pedido que os fomentadores de guerra fossem impedidos a tempo, o que foi considerado alta traição. Ela começou a cumprir pena de prisão em Berlim em 18 de fevereiro de 1915, sendo libertada um ano depois, em 18 de fevereiro de 1916. Após a condenação, apareceu em reuniões de protesto contra o veredicto, em Frankfurt sobre o Meno: “Acredita-se que agora acharam um grito de terror: qualquer um que se atreva a sacudir os alicerces do Estado será trancafiado na prisão por doze meses. […] O promotor justificou o nível da sentença dizendo que eu queria atingir o nervo vital do Estado atual.”[10] Dessa longa estada na prisão se conservaram uma extensa correspondência e um calendário que durou até o fim de 1915. O calendário foi levado pela secretária de Rosa Luxemburgo, Mathilde Jacob, em sua primeira visita à prisão, para que, ao longo do ano, pudessem ser feitas pequenas anotações diárias. Uma das primeiras notas é esta, de 5 de março de 1915: “Recebi este calendário e flores maravilhosas da senhorita Jacob (anêmonas, miosótis, amentilhos e ramos de cerejeira).”[11] Em outro lugar Rosa Luxemburgo advertiu sua estreita colaboradora bem ao seu estilo: “[…] e não se esqueça de que, aconteça o que acontecer, a vida deve ser encarada com paz de espírito e alegria. E isso, mesmo aqui, eu tenho na medida necessária.”[12]

A rotina quotidiana é de novo estritamente regulamentada: a prisioneira levanta-se às 5:40, mas às 9:00 deve ir para a “cama”, que ela descreve como um “instrumento” “que eu fecho todas as manhãs e abro todas as noites e que durante o dia fica ajustada à parede tão cuidadosamente como se fosse uma tábua.”[13] Agora sabemos pelo calendário com que atenção Rosa Luxemburgo seguia os acontecimentos da mãe natureza em sua estreita jaula na prisão feminina de Berlim, na Barnimstrasse. Em 18 de abril, ela anota: “Ouvi o primeiro melro-dourado hoje às 12:30!”[14] Mas, acima de tudo, ela trabalha, como fazia durante suas estadas anteriores na prisão: “Depois de duas semanas, finalmente consegui meus livros e permissão para trabalhar, você pode imaginar que não foi preciso dizer-me isso duas vezes. Minha saúde vai ter que se acostumar com a dieta local, um tanto peculiar; o principal é que não me incomoda no trabalho.”[15] No entanto, as regras da prisão eram rígidas, ainda que nas cartas às vezes pareça que o regime prisional tivesse pouco efeito sobre ela, pois sabia onde estava e por que estava lá. “Mas devo dizer-lhe que não posso receber cartas com tanta frequência, por isso, infelizmente, temos que nos limitar um pouco, embora a senhorita possa imaginar que cada mensagem sua é um prazer para mim. A senhorita também não deve designar ninguém com simples letras iniciais; sei que esse é o seu hábito em relação a conhecidos mútuos, mas não é permitido aqui.”[16]

Além dos livros de que precisava para seus estudos, ela também levou um pequeno tesouro para a cela da prisão – o herbário começado em 1913: “Não sei se já lhe mostrei meus álbuns de botânica, nos quais, desde maio de 1913, classifiquei umas 250 plantas – todas esplendidamente conservadas. Eu os tenho todos aqui, como também meus vários atlas, e agora posso acrescentar mais um álbum especial para a ‘Barnimstrasse’. Justamente todas as florzinhas que a senhorita me enviou eu ainda não tinha, e agora as coloquei no álbum […].”[17]A Luise Kautsky, que obviamente não conhecia a paixão de Rosa Luxemburgo pela coleta de plantas, foi enviado este belo trecho de carta: “Há dois anos – você nem sabe disso – tive outra obsessão: em Südende fui tomada de paixão pelas plantas; comecei a coletar, a prensar e herborizar. Durante quatro meses eu literalmente não fiz outra coisa que não perambular pelo campo ou ordenar e classificar em casa aquilo que trazia de minhas excursões. Agora tenho doze álbuns de plantas bem cheios e me oriento muito bem na ‘flora nativa’, por exemplo, no pátio da enfermaria aqui, onde, para alegria das galinhas e minha, vicejam alguns arbustos e um mato exuberante. Assim, preciso sempre ter algo que me tome da cabeça aos pés, por menos que isso convenha a uma pessoa séria da qual – para azar dela – se espera sempre algo de sensato.”[18]

Um dia depois de ser libertada, em 18 de fevereiro de 1916, escreve a Clara Zetkin em Stuttgart: “Cheguei bem em casa.”[19] Poucos dias mais tarde comunica à mesma destinatária: “Infelizmente por enquanto não posso pensar em ir até aí; trouxe um estômago completamente arruinado e grande fraqueza no coração e preciso começar o tratamento que faço aqui sistematicamente sob a supervisão de um bom médico.”[20] Em março, a seguinte nota é enviada a Stuttgart: “O tempo me faz tão bem, agora a primavera finalmente chegou e assim que tenho um minuto livre passeio pelo campo em Südende.”[21] Pouco antes de acabar oficialmente o tempo de Rosa Luxemburgo em liberdade, ela escreve a Sofia Liebknecht, de Leipzig, sobre uma curta visita ao parque da cidade: “Antes de me sentar para ler examinei a disposição das árvores e arbustos – todas formas conhecidas, o que constatei com satisfação.”[22]

IV

“Meu vis-à-vis é o presídio masculino, o costumeiro edifício sombrio de tijolos vermelhos.” Vista atual da prisão em Breslau.

Rosa Luxemburgo foi presa pela quarta vez em 10 de julho de 1916, em plena guerra, quando as batalhas sangrentas nas linhas de frente, com grandes baixas para todos os lados, não tinham fim. As autoridades militares impuseram a chamada prisão militar de segurança contra a lutadora revolucionária, considerada um perigo público na retaguarda. Nesses anos de reclusão Rosa Luxemburgo não era uma presidiária. Em alguns aspectos, importantes para ela, tinha até direito a certas facilidades que soube utilizar a contento. Mas permanecia o desolador quotidiano da prisão, as celas esquálidas, que, mais tarde, após ser levada para os dois presídios fora de Berlim, ela procurou, com uma variedade de pequenos meios, tornar mais confortáveis, como testemunham suas famosas cartas da prisão. Primeiro, foi levada em 10 de julho de 1916 para o presídio da polícia na Alexanderplatz, e em 21 de julho de 1916, retornou ao presídio feminino na rua Barnim, ambos em Berlim; em 26 de outubro de 1916, foi levada para a fortaleza de Wronke, na Posnânia; e, por fim, em 22 de julho de 1917, para o presídio de Breslau, de onde foi posta em liberdade em 8 de novembro de 1918.

Em comparação, hoje sabemos muito sobre o último período de prisão de Rosa Luxemburgo, porque grande parte de sua extensa correspondência foi preservada, recolhida e publicada ao longo do tempo.[23] Atualmente, as cartas da prisão da época da Primeira Guerra Mundial fazem parte da literatura universal e se tornaram praticamente uma obra independente. Uma vez que, por razões evidentes da realidade prisional, as discussões sobre a situação política não podiam ter nenhum espaço ou, quando muito, um espaço marginal ou nas entrelinhas – os comentários que ela escrevia sobre a situação política eram feitos de maneira ilegal e pelas costas dos censores da prisão –, ficaram em primeiro plano reflexões de um tipo diferente, o que ainda hoje fascina os leitores. Em nenhum outro lugar, a não ser nessas cartas, pôde Rosa Luxemburgo mostrar, de forma tão ampla por meio da palavra escrita, sua índole de observadora da natureza, extremamente dotada e talentosa. E ela fez, ainda mais fortemente que antes, maravilhosas descrições de si mesma, de Deus e sua época: “Não podemos esquecer jamais de sermos bons, pois na relação com outras pessoas a bondade é mais importante que o rigor. Lembre-me sempre disso, pois eu tendo ao rigor, infelizmente – é verdade que apenas no relacionamento político. Na convivência pessoal sei me livrar da dureza, e tendo, na maior parte das vezes, a amar e compreender tudo.”[24] Mais uma vez Rosa Luxemburgo tem consigo o amado herbário de que cuida meticulosamente. Em Wronke, dentro dos muros da prisão, ela dispõe até de um pequeno jardim diante da cela. “A primavera, no entanto, demora a chegar. Aqui no meu jardinzinho ainda não se vê nenhum verde. Mas pelos botões já diagnostiquei todos os arbustos e espero uma esplêndida floração. […] Haverá um lindo desabrochar contínuo e espero pacientemente, pois já sinto grande deleite com os rebentos. De passarinhos, além das minhas abelheiras e melros, apareceram tentilhão, pintassilgo, chapins azuis e lavandiscas.  O tentilhão vem todas as manhãs às 7 horas e, à janela, pede comida; o sujeitinho é muito manso.”[25] Ela trabalha regularmente como de costume por trás dos altos muros da prisão: “O que estou lendo? Principalmente livros sobre ciências naturais: geografia das plantas e dos animais. Ontem eu estava justamente lendo sobre as causas do desaparecimento das aves canoras na Alemanha: é o crescente cultivo racional dos bosques, dos jardins e da lavoura que lhes destrói pouco a pouco as condições naturais de nidificação e alimentação: árvores ocas, florestas virgens, matagais, folhas murchas no chão dos jardins. Doeu-me tanto ler isso. Não pelo que o canto significa para as pessoas, foi a imagem da silenciosa, incontível decadência dessas pequenas criaturas indefesas que me provocou tanta dor ao ponto de me fazer chorar. E me fez lembrar de um livro russo do professor Siber sobre a decadência dos pele-vermelhas na América do Norte, que li ainda em Zurique: exatamente da mesma maneira foram eles expulsos pouco a pouco de sua terra pelos homens civilizados e entregues a uma decadência muda, cruel. Mas é claro que devo estar doente para que tudo me abale tão profundamente. Ou então, sabe de uma coisa? Tenho às vezes a sensação de não ser verdadeiramente um ser humano, e sim algum pássaro ou outro animal em forma humana malograda; no fundo eu me sinto muito mais em casa num pedacinho de jardim como aqui ou no campo entre as vespas e a relva do que num congresso do partido. Para você posso dizer tudo isso sem preocupação: você não vai farejar logo uma traição ao socialismo. Você sabe que eu, apesar de tudo, espero morrer a postos: numa batalha urbana ou na penitenciária. Mas o meu eu mais profundo pertence antes aos chapins-reais que aos ‘camaradas’.”[26]

A súbita “mudança” para a penitenciária de Breslau,  onde lhe foram dadas duas celas, uma ao lado da outra, para que pudesse acomodar a biblioteca que havia crescido com o tempo, foi certamente uma ducha fria. “Santo Deus, porém o céu e as nuvens, e toda a beleza da vida não ficam em Wronke, só porque tive que dizer-lhes adeus; não, eles vão comigo e ficam comigo, onde quer que eu esteja e enquanto eu viver.”[27] Tendo chegado a Breslau logo enviou a seguinte nota para Berlim: “Ontem cheguei aqui meio morta de cansaço. Estou tão desacostumada das pessoas e da agitação! A primeira impressão do meu alojamento foi tão desoladora que com esforço contive as lágrimas. Depois de Wronke é um salto grande demais. Mas o que for possível fazer para aliviar um pouco minha existência aqui será provavelmente feito, disso não duvido.”[28] Também em Breslau Rosa Luxemburgo encontra rapidamente o habitual ritmo quotidiano de que precisa para reunir forças suficientes contra o desgastante dia a dia da prisão. “A situação toda aqui é muito semelhante à da Barnimstrasse, falta apenas o belo pátio verdejante da enfermaria onde todos os dias eu podia fazer alguma pequena descoberta botânica ou zoológica. […] Meu vis-à-vis é o presídio masculino, o costumeiro edifício sombrio de tijolos vermelhos. Mas em diagonal sobre os muros vejo as copas verdejantes de algum parque, um grande álamo negro cujo murmúrio é audível sempre que há uma corrente de ar mais forte, e uma série de nobres freixos muito mais claros, dos quais pendem feixes de vagens amarelas (mais tarde marrom-escuro). As janelas dão vista para noroeste, e assim de vez em quando vejo belas nuvens vespertinas, e você sabe que uma nuvem rosada pode me fazer abstrair de tudo e me indenizar por tudo. Nesse momento – 8 horas da noite (portanto 7, na verdade) –, o sol mal desceu abaixo do telhado do presídio masculino, ele ainda brilha intensamente através das bandeira envidraçadas no telhado, e o céu inteiro se ilumina com uma luz dourada. Eu me sinto muito bem e preciso – nem eu mesma sei por que – cantar baixinho a Ave Maria de Gounod (você conhece?).”[29]

V

Primeira edição do manuscrito sobre a Revolução Russa, escrito na prisão em Breslau.

No início de sua estada na prisão em 1915/16, Rosa Luxemburgo pôde sair por dois dias, em 12 e 13 de março de 1915, para arrumar as coisas em seu apartamento. Segundo Mathilde Jacob, ela foi acompanhada por uma funcionária muito indulgente e os dois dias foram aproveitados para reencontrar o círculo de amigos: “Quando nos sentamos juntos, episódios da prisão foram contados. Karl Liebknecht relatou sobre seu tempo na fortaleza de Glatz e as prisões de seu pai, Leo Jogiches sobre seu encarceramento e o de Rosa Luxemburgo na Polônia e na Rússia.”[30] Leo Jogiches foi a primeira pessoa com quem Rosa Luxemburgo pôde aprender de que modo se comportar na prisão como prisioneira política. A segunda fonte foi Marcin Kasprzak, mencionado antes em relação à cidadela de Varsóvia. Leo Jogiches já havia conhecido a prisão do tsar em Vilna (hoje Vilnius), antes de fugir para Zurique no outono de 1890 e ali topar com Rosa Luxemburgo. Em Vilna, ficou preso na famigerada cidadela da cidade, de setembro a novembro de 1888, e de maio a setembro de 1889. E em março de 1906 foi preso junto com Rosa Luxemburgo, ficando também no pavilhão X da cidadela de Varsóvia. O governo tsarista não mostrou clemência em relação a ele, uma vez que tinha escapado do Império Russo em 1890, antes do iminente recrutamento para o exército  tsarista. Por fim, foi condenado a oito anos de exílio, mas em março de 1907 conseguiu escapar da prisão de Varsóvia, de onde os prisioneiros condenados eram enviados ao exílio, escondendo-se ainda por algum tempo na cidade, antes de voltar finalmente a Berlim, via Cracóvia. Ainda que Rosa Luxemburgo e Leo Jogiches tenham terminado seu relacionamento pessoal e se separado, continuaram durante toda a vida íntimos parceiros políticos. Jogiches ficou preso em Berlim-Moabit de março a 8 de novembro de 1918.

Em 18 de novembro de 1918 foi publicado no jornal Die Rote Fahne [A Bandeira Vermelha] um artigo de Rosa Luxemburgo intitulado “Uma questão de honra”, em que ela, em nome dos presos políticos, quebra lanças por uma reforma judicial ampla, que estava na ordem do dia: “Não queríamos ‘anistia’ nem perdão para as vítimas políticas do velho poder reacionário. Exigíamos nosso direito à liberdade, à luta e à revolução para aquela centena de militantes corajosos e leais que definhavam nas penitenciárias e nas prisões por terem lutado, sob a ditadura militar do bando criminoso imperialista, pela liberdade do povo, pela paz e pelo socialismo. Agora estão todos em liberdade. Estamos novamente em fila, prontos para o combate. […] Contudo, outra categoria de habitantes infelizes desses edifícios lúgubres foi completamente esquecida. Ninguém pensou até agora nos milhares de figuras pálidas e macilentas que definham anos a fio atrás dos muros de prisões e penitenciárias expiando crimes comuns. […] O sistema penal existente, profundamente impregnado de um brutal espírito de classe e da barbárie do capitalismo, precisa ser extirpado de vez. É preciso começar imediatamente uma reforma de base do sistema penal. […] a pena de morte, a maior vergonha do ultrarreacionário código penal alemão, precisa desaparecer agora! […] Liebknecht e eu, ao deixarmos os hospitaleiros espaços onde vivemos ultimamente – ele, seus irmãos de penitenciária, de cabeça tosada, eu, minhas pobres queridas ladras e mulheres da rua com quem vivi três anos e meio debaixo do mesmo teto – nós lhes prometemos solenemente, enquanto nos acompanhavam com o olhar triste: não os esqueceremos!”[31]

Memorial à margem do Canal Landwehr, onde foi jogado o corpo de Rosa Luxemburgo.

Post-script

Dos trabalhos que Rosa Luxemburgo escreveu durante o tempo no cárcere, destaquemos três como exemplo.

Em primeiro lugar, “Sobre a Constituinte e o governo provisório”, redigido em polonês em março e abril de 1906, na prisão do tsar em Varsóvia, contrabandeado para fora da prisão, e que até hoje é pouco comentado pela recepção. Aqui Rosa Luxemburgo estabelece o elemento básico, tão dialético quanto difícil, que a distinguirá decisivamente de Lenin: sem uma maioria ganha e efetivamente consolidada na sociedade, não há saída da velha sociedade para o socialismo.

Em seguida, “A crise da social-democracia”, redigido em 1915 na prisão em Berlim, que Mathilde Jacob contrabandeou para fora da prisão e preparou para publicação, tornando-se amplamente conhecido como Brochura de Junius. Nele, Rosa Luxemburgo arrasta a social-democracia internacional perante o tribunal da razão, por causa da capitulação na Primeira Guerra Mundial, descrita como uma catástrofe histórica mundial. Mas ela aconselha a examinar cuidadosa e minuciosamente o que do legado social-democrata deve ser levado em direção a uma nova margem e o que deve ser deixado para trás.

Por fim, o manuscrito incompleto sobre a Revolução Russa, redigido na prisão de Breslau em setembro de 1918, que Paul Levi publicou pela primeira vez em 1922, e que, na história recente, talvez possa ser considerado o mais famoso texto político escrito no cárcere.

Vista atual da prisão em Vilna.

[1] Carta de 9 de setembro de 1904.

[2] Carta de 23 de setembro de 1904. Traduzida em Rosa Luxemburgo, Cartas, São Paulo, Editora Unesp, 2017, vol. III. Sempre que houver tradução, farei a referência.  

[3] Carta de 4 de outubro de 1904 (vol. III).

[4] Carta a Luise e Karl Kautsky, de 13 de março de 1906 (vol. III).

[5] Carta de 7 de abril de 1906 (vol. III).

[6] Z pola walki, Nr. 12, setembro de 1905, p.1.

[7] Carta a Emanuel Wurm de 8 de julho de 1906.

[8] Carta a Mathilde e Emanuel Wurm de 18 de julho de 1906.

[9] Carta de 12 de agosto de 1906.

[10] Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke 7/2, p. 810 ss.

[11] Idem, p.921.

[12] Carta de 23 de fevereiro de 1915 (vol. III).

[13] Carta a Marta Rosenbaum de 12 de março de 1915.

[14] Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke 7/2, p. 926.

[15] Carta a Marta Rosenbaum de 12 de março de 1915.

[16] Carta a Mathilde Jacob de 5 de maio de 1915.

[17] Carta a Mathilde Jacob de 9 de abril de 1915 (vol. III).

[18] Carta de 18 de setembro de 1915 (vol. III). 

[19] Carta de 19 de fevereiro de 1916.

[20] Carta de 25 de fevereiro de 1916.

[21] Carta de 18 de março de 1916.

[22] Carta de 7 de julho de 1916.

[23] A coleção mais extensa de cartas de Rosa Luxemburgo é a edição em seis volumes das Gesammelte Briefe [Cartas coletadas], publicada atualmente pela editora Karl Dietz em Berlim. Iniciada na RDA em 1982, compreende em grande parte todas as cartas encontradas e conhecidas até hoje.

[24] Carta a Marta Rosenbaum de 10 de fevereiro de 1917 (vol. III).

[25] Carta a Clara Zetkin de 13 de abril de 1917.

[26] Carta a Sophie Liebknecht de 2 de maio de 1917 (vol. III).

[27] Carta a Sophie Liebknecht de 20 de julho de 1917.

[28] Carta a Mathilde Jacob de 23 de julho de 1917.

[29] Carta a Sophie Liebknecht de 2 de agosto de 1917 (vol. III).

[30] Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke 7/2, p.922.

[31] Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke 4, p. 404 ss. (vol. II, p.238ss.)

Tradução de Isabel Loureiro.