Rosa Luxemburgo, ecofeminista?

Hoje ela estaria ao lado dos movimentos feministas – e dos que combatem a extinção da vida na Terra e defendem a convivência harmoniosa entre os humanos e a natureza

Por Isabel Loureiro[1]

Isabel Loureiro/ arquivo

A revolucionária judia Rosa Luxemburgo nasceu no dia 5 de março de 1871, na pequena cidade de Zamość, na Polônia russa. “Por dizer aos pobres a verdade” (Brecht), foi assassinada em Berlim em 15 de janeiro de 1919, por soldados de uma milícia protofascista, sob comando de seus antigos companheiros de partido. Militante do socialismo polonês, alemão e internacional, ao mesmo tempo que foi transformada em mártir da causa comunista, suas ideias foram esquecidas, deturpadas ou proibidas pela esquerda hegemônica no século 20. Sua abertura de espírito, fruto de um sentimento espontâneo da vida que frutificou numa interpretação não dogmática da teoria de Marx, não agradava à burocracia comunista.

Sua obra despertou interesse novamente quando, nas rebeliões estudantis de 1968, Rosa voltou como símbolo de rebeldia. Desde então mais de 40 biografias, inúmeras peças de teatro, romances e filmes foram feitos sobre essa figura ímpar do socialismo internacional. Na América Latina seu projeto radicalmente anticapitalista, antinacionalista, anticolonial, anti-imperialista e politicamente libertário começa finalmente a conquistar um público mais amplo. Entre nós Rosa virou semente das lutas feministas e ecossocialistas.

Era Rosa feminista?

Na época de Rosa Luxemburgo, a tese da inferioridade natural das mulheres era amplamente admitida na sociedade patriarcal da Alemanha imperial: o código civil estabelecia a subordinação da mulher e dos filhos ao marido. Só em 1908 foi abolida a proibição de participar da vida política e entrar na universidade. A ideia de uma natureza feminina, que obrigava a mulher a ficar confinada ao papel de esposa e mãe, era moeda corrente. Nesse cenário, a principal bandeira feminista consistia na luta contra a desigualdade entre os sexos, sobretudo na luta por direitos políticos, que só foram obtidos com a queda da monarquia em 1918.

Sabemos que Rosa não tinha nenhum interesse particular por “assuntos de mulher” e que não pode ser considerada feminista na atual acepção do termo. Se reunirmos o pouco que escreveu a respeito, veremos que sua posição é basicamente a mesma de sua amiga Clara Zetkin, a liderança feminista “oficial” da social-democracia alemã, com quem Rosa aprendeu o que sabia sobre o tema. Ambas separam “feminismo burguês” e “feminismo proletário”, consideram o trabalho assalariado fundamental para a emancipação feminina e criticam a hipocrisia da família burguesa, com sua desigualdade inerente.

Isso fica claro quando Rosa comenta o Congresso Internacional das Mulheres, reunido em Berlim em 1904, que vê como um congresso de senhoras burguesas. Para ela, a luta consequente pelos direitos das mulheres é inseparável do combate contra o racismo, como existia nos primórdios do movimento feminista nos Estados Unidos. Rosa critica o movimento feminista europeu com suas reivindicações fúteis, que apenas cumprem o papel de preencher o “vazio da vida e da cabeça” das senhoras burguesas, cansadas de servir de bonecas ou cozinheiras dos maridos. Ela ironiza o “ingresso das mulheres nas universidades, andar de bicicleta, direito de voto para os parlamentos, ensinar floricultura e artesanato às meninas, debater sobre a melhor maneira de educar as crianças, usar roupas confortáveis, etc.”

Em contrapartida, a mulher trabalhadora, que se recusa a comparecer a esse congresso de burguesas, “é igual ao seu companheiro no sofrimento da labuta para obter o pão quotidiano para si e seus filhos.” Fazendo do desejo realidade, Rosa considera que já existe igualdade entre homens e mulheres do proletariado pelas seguintes razões:  ambos trabalham para o capital e recebem salário, justificação para terem os mesmos direitos políticos na sociedade capitalista; ambos estão engajados na luta pelo socialismo e sabem que “assim que a classe trabalhadora vitoriosa tiver eliminado toda exploração e opressão do homem pelo homem, também encontrará fim a longa dominação da mulher pelo gênero masculino.”

Nos poucos artigos que escreveu sobre o assunto, Rosa adota a posição convencional das feministas marxistas no começo do século XX, em que a questão feminina é apenas um aspecto da questão social. Além disso, considera a mulher trabalhadora superior à burguesa porque se tornou independente pelo trabalho assalariado. Contra a estreiteza da vida doméstica, apresenta uma visão idealizada da mulher trabalhadora e parece ignorar a opressão de gênero na classe operária: “É apenas na proletária moderna que a mulher se torna um ser humano, pois é apenas a luta que produz o ser humano, a participação no trabalho cultural, na história da humanidade.”

O raciocínio se limita à oposição simplista entre “feminismo burguês” e “feminismo proletário”. Questões como dupla jornada de trabalho, criação de serviços que amenizem as tarefas domésticas, definhamento da família vista como instituição de reprodução da ideologia burguesa, união livre etc., como reivindicavam as mulheres russas na Revolução de Outubro de 1917, não são temas abordados nos artigos, ainda que Rosa tivesse consciência da hipocrisia da vida familiar da época, incluindo os trabalhadores.

Ela mesma não constituiu família, embora na juventude desejasse ardentemente casar com seu companheiro Leo Jogiches e ter com ele um filho/uma filha. Mas Leo, militante totalmente consagrado à revolução, para quem a família significava um estorvo, não servia para esse papel. Rosa, arrastada pelo turbilhão da vida política, acabou por aceitar o que considerava uma limitação.

Nesses artigos, três aspectos de grande atualidade chamam a atenção: a união entre feminismo e combate ao racismo; a consideração de que o duro trabalho doméstico, “uma gigantesca contribuição em termos de autossacrifício e dispêndio de forças”, que ajuda o homem “a garantir, com um salário exíguo, a existência diária da família e a educar as crianças”, é injustamente considerado improdutivo. Rosa parece descontente com a camisa de forças da análise marxista tradicional, que ignora o papel central do trabalho reprodutivo na manutenção da vida. Ela poderia perguntar com Maria Mies: “Por quê o trabalho que produz um automóvel é considerado valioso mas o trabalho que produz um ser humano não tem valor?”

A ideia de que o trabalho doméstico não remunerado cria indiretamente lucro para o capitalista só foi formulada bem mais tarde, inclusive a partir de indicações da própria Rosa na sua obra de economia política, como veremos a seguir. E, por fim, a consideração de que apenas na luta, na ação, a mulher se humaniza. O que lembra um slogan das feministas de São Paulo: “Nem recatada e nem do lar, mulher na rua é pra lutar”. São insights que Rosa não desenvolve mas que mostram como era sensível à opressão das mulheres, sobretudo das pequenas camponesas, negras e indígenas, as mais oprimidas entre as oprimidas. Longe do feminismo liberal dos nossos dias, Rosa Luxemburgo defendia o feminismo para as 99% e fazia suas as palavras de Charles Fourier: “Em toda sociedade o grau da emancipação feminina é a medida natural para a emancipação geral.”

As feministas e Rosa Luxemburgo

As feministas alemãs da década de 1980 foram as primeiras a se apropriar de maneira criativa das ideias de Luxemburgo, vendo que podiam contribuir para uma política diferente da masculina, mais próxima das necessidades humanas, menos tecnocrática, menos beligerante, menos destrutiva. Num primeiro momento, Rosa aparecia como inspiração por ocupar o espaço público como intelectual, oradora, jornalista, professora da escola do partido, e também por sua vida privada, alheia aos hipócritos valores burgueses. Numa época em que era consensual que a participação feminina no espaço público representava um avanço em termos de humanização, foi preciso ver mulheres em altos cargos para perder as ilusões a esse respeito.

Indo além, as feministas perceberam que o eixo do pensamento político de Rosa Luxemburgo – as massas só se libertam por meio de sua ação autônoma – era válido também para a emancipação das mulheres. Assim como as massas, se as mulheres não agirem por si mesmas, outros sempre irão agir sobre elas. A emancipação dos subalternos, quer seja uma classe, quer sejam as mulheres, só pode resultar da ação autônoma das próprias concernidas. Liberdade outorgada não é liberdade.

Mas a teorização feminista inspirada em Rosa foi além da ideia básica da auto-emancipação das mulheres ao incorporar a tese central de A acumulação do capital, sua principal obra de economia política. Em termos muito esquemáticos: o capital precisa de domínios externos a ele para poder se reproduzir e nesse processo de “acumulação primitiva permanente” destrói com violência os domínios extra-capitalistas ao transformá-los em mercadoria. Essa era a explicação teórica de Luxemburgo para as origens do imperialismo, que continua esclarecendo o processo de saque e extermínio a que são submetidas as populações originárias na América Latina.

Na década de 1980 as feministas atualizaram essa tese mostrando que os espaços de acumulação do capital não são apenas geográficos, mas também sociais, e incluíram o trabalho doméstico não remunerado das mulheres, que permite ao capital pagar salários menores aos trabalhadores do sexo masculino. O trabalho flexível, precário, mal remunerado – ou não-remunerado – das mulheres se tornou a referência para a acumulação do capital em larga escala.

Uma das autoras mais conhecidas dessa corrente, a já mencionada Maria Mies, mostra que o capitalismo contemporâneo, para se expandir, precisa extrair valor tanto das colônias e da natureza quanto das donas de casa como setores não-mercantis. A mãe-natureza, as mulheres e as colônias são centrais e não periféricas no processo de acumulação do capital. Esse conjunto de ideias é inspirador para as feministas da América Latina, como observa Hernán Ouviña em seu belo livro sobre Rosa Luxemburgo.

Uma ecossocialista precoce?

Talvez pareça excessivo ver Rosa como precursora do ecossocialismo, mas o fato é que seu profundo amor pela natureza a converte numa socialista muito especial comparada aos seus companheiros de partido. Por vocação Rosa Luxemburgo teria se dedicado às ciências  da natureza se o dever moral de lutar pela mudança social não tivesse se imposto. Sua ligação com a natureza – que aparece nas cartas da prisão escritas durante a Primeira Guerra Mundial, quando, impedida pela censura de falar de política, remete às amigas e amigos belas e minuciosas descrições de plantas, animais, nuvens – é um traço tão constitutivo de sua personalidade que é impossível compreender Rosa se isso não for levado em conta. Também não podemos esquecer o herbário quase profissional a que se dedicou de 1913 a 1918.

Ela resume sua ligação com a natureza numa carta à amiga Sonia Liebknecht, de 12 de maio de 1918. Comentando o embotamento dos moradores das cidades em relação às árvores e aos animais, escreve: “Em mim, ao contrário, a fusão íntima com a natureza orgânica … toma formas quase doentias, o que provavelmente tem a ver com meu estado de nervos .. daqui de minha cela finos fios invisíveis me ligam a milhares de criaturas pequenas e grandes em todas as direções”.

Uma carta anterior à mesma amiga, de 2 de maio, é ainda mais sugestiva quanto a esse tópico. Ela confessa seu sofrimento ao ler, na prisão, um livro que explicava como o desaparecimento das aves canoras na Alemanha se devia à crescente destruição das matas e à agricultura mecanizada. E compara o aniquilamento lento e silencioso “dessas pequenas criaturas indefesas” com o extermínio dos indígenas da América do Norte que foram  “expulsos pouco a pouco de sua terra pelos homens civilizados e entregues a uma decadência muda, cruel.”

Nessa passagem vemos claramente o vínculo entre questão ambiental e social. É verdade que não se trata de uma reflexão teórica, são antes manifestações do seu modo espontâneo de ser, que fazem parte de uma visão de mundo generosa que abarca todas as formas de vida. Isso nos dá elementos para pensar uma concepção de socialismo pós-humanista, que confira a mesma dignidade a todas as manifestações de vida: animais, plantas, humanos. E no reino dos humanos todos têm vez, sobretudo os pobres, os infelizes, os maltratados, os desprezados, os “humilhados e ofendidos”, as populações originárias exterminadas ou saqueadas. Numa palavra, todos os que foram e são marginalizados pelo rolo compressor da modernização capitalista.

Hoje Rosa estaria ao lado dos que combatem a extinção da vida na Terra, dos que defendem a convivência harmoniosa entre os humanos e a natureza. Dos que rejeitam a ideia de que os humanos têm o direito de expropriar a natureza como recurso para obter lucro, justamente por se acreditarem o centro da criação a que tudo o mais está subordinado.

Contra esse imperialismo antropocéntrico, ela escreve a Luise Kautsky, em 15 de abril de 1917:  “Já me dou por feliz de estar viva, a cada manhã inspeciono cuidadosamente os brotos em meus arbustos, visito todos os dias uma joaninha vermelha com duas bolinhas pretas nas costas que desde há uma semana mantenho viva num galho apesar do vento e do frio, protegida pelo calor de uma atadura de gaze, observo as nuvens sempre novas e mais belas e sinto que não sou em nada mais importante que essa joaninha, e sou indescritivelmente feliz nesse sentimento de minha pequenez.”

Rosa Luxemburgo não queria apenas oportunidades iguais para homens e mulheres nos limites da sociedade patriarcal-capitalista, e sim acabar com o sistema de exploração e de dominação dos seres humanos pelos seres humanos e da natureza pelo capital. Por isso lutou a vida inteira em prol de uma sociedade justa e livre, sinônimo de socialismo. Nesta época de desmanche da civilização, em que o “novo normal” que se anuncia poderá levar ao fim da vida na Terra, seu projeto continua a nos interpelar.


[1] Isabel Loureiro é professora aposentada de Filosofia da Unesp e colaboradora da Fundação Rosa Luxemburgo (FRL).