Na hora revolucionária: o que fazer? (1905)
Foto: Rosa Luxemburgo/ Editora Dietz – Fundação Rosa Rosa
Este é um dos muitos artigos escritos por Rosa durante a Revolução Russa de 1905-1906, em que, contra a substituição das massas por grupos armados, faz a defesa do esclarecimento, da agitação e organização das massas trabalhadoras.
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A atual revolução no império tsarista coloca a social-democracia frente a tarefas totalmente novas, que nenhum partido social-democrata viu antes em qualquer país do mundo. Em todos os Estados modernos, o movimento operário só se desenvolveu depois da queda dos governos feudais e absolutistas em larga escala. Na Inglaterra, na França, na Alemanha e na Áustria, a própria burguesia foi a classe que declarou luta aberta contra o absolutismo no interesse do livre desenvolvimento do capitalismo, induziu a revolução política e conquistou formas de governo parlamentares, constitucionais ou até mesmo republicanas, como na França.
Na verdade, mesmo na Europa ocidental não foi a burguesia que fez a revolução, e sim o povo trabalhador. Foi ele quem caiu nas barricadas da grande Revolução Francesa, como também em 1848 em Viena e em Berlim. Verteu fartamente seu sangue nas lutas contra as tropas reais, e pelo preço do seu sangue foram adquiridas as liberdades políticas sobre as quais a burguesia erigiu seu atual domínio.
Mas o povo trabalhador atuou nessas revoluções apenas como ferramenta nas mãos da burguesia, que estava na vanguarda do movimento. Foi a bucha de canhão com a qual a classe dos capitalistas preparou o seu caminho para dominar. Os trabalhadores franceses e alemães da época ainda não tinham se separado da burguesia e da pequena-burguesia como uma classe e um partido especiais, não compreenderam os seus interesses especiais enquanto trabalhadores e a sua animosidade natural contra os interesses da burguesia. Foram para a revolução contra o governo absolutista, convocados pela classe capitalista, liderados pela pequena-burguesia, sem ao menos entender o que suas lutas trariam de resultados para si.
A luta entre o proletariado e a burguesia só começou bem mais tarde. Com isso, a social-democracia cresceu na França e na Alemanha sobre o solo da Constituição burguesa, aproveitou-se desde o início das eleições parlamentares, da liberdade de imprensa e de expressão, da liberdade de organização e coalizão. Diferentemente de nós no Estado tsarista, não se viu diante da tarefa de como conquistar todos esses direitos políticos elementares. Não se viu diante da questão: o que fazer no momento da revolução? Como acelerar a vitória? Como liderar a massa do povo trabalhador?
Todas essas questões se colocam hoje para nós, e como a experiência dos partidos irmãos nos demais países ainda não é capaz de nos fornecer uma resposta, temos que encontrar essa resposta nós mesmos.
Há socialistas para os quais naturalmente a questão mais candente e pela qual devemos quebrar a cabeça agora é a questão do armamento da classe trabalhadora. Segundo esses políticos, tudo vai funcionar bem azeitado, e a vitória sobre o absolutismo estaria garantida se apenas tivermos em estoque uma quantidade correspondente de dinamite, bombas e revólveres. “Já possuímos forças revolucionárias”, declara, por exemplo, o órgão de imprensa do PPS1 Robotnik em seu nº 59; “agora queremos conquistar os meios revolucionários, criar organizações de luta, produzir armas e outros armamentos, e conquistaremos as liberdades políticas”. Esse modo de ver, de partidos como o PPS ou os chamados Socialistas Revolucionários2 na Rússia, tem a ver com partidos que se conectaram apenas de maneira artificial ao movimento de classe do proletariado e veem nesse grande movimento sobretudo uma determinada quantidade de pessoas que podem ser enviadas para a batalha física. A burguesia, para quem o poder político do movimento de massas popular é inteiramente incompreensível, enxerga também em todas as lutas sociais e políticas apenas a questão da violência puramente física. Se, por exemplo, perguntarmos ao nosso industrial ou aristocrata rural por que considera ser impossível a restauração da Polônia hoje, ele certamente responderá que isso é algo muito simples: “Pois de onde mais, caro senhor, retiraremos tantas forças para acabar com o enorme exército dos Estados de ocupação?” Esse mesmo ponto de vista raso e grosseiro a respeito das lutas políticas é transferido pelos socialistas ao movimento revolucionário a partir da derrota de nossos social-patriotas3 ou dos terroristas russos. Primeiro, durante décadas simplesmente não acreditaram nas possibilidades, na força e na eficácia do movimento de classe do proletariado russo. E quando esse espírito e essa força se tornam realidade, de maneira compreensível e indubitável até mesmo para os servos tsaristas, esses “socialistas” gritam a plenos pulmões: agora coloquemos bombas e dinamite nas mãos dessas massas o mais rapidamente possível e a batalha estará vencida!
Nem é necessário estar conectado intelectualmente com o movimento de classe do proletariado para, numa revolução como a atual no tsarismo, enxergar sobretudo a questão do puro armamento mecânico. Se a quantidade de armas e soldados fosse decisiva para a vitória ou a derrota, a derrota dos levantes4 da nossa nobreza seria um enigma. Pois o levante de 1831 também tinha à disposição consideráveis tropas do exército regular e armado da Polônia, e por fim os “líderes” do levante emigraram com destacamentos vistosos que nem foram convocados para lutar.
Contudo, o mais importante é que a ideia de um punhado de líderes socialistas de “armar” a massa popular – pois a quantidade de agitadores socialistas ativos é e continua sendo por enquanto, dentro das nossas condições, apenas um punhado em comparação com as massas de milhões requisitadas como combatentes da revolução – é meramente a transferência viva dos conceitos dos círculos conspiratórios para a luta de classes do proletariado. Assim como os terroristas, conforme um plano maquinado em um quartinho “conspiratório”, armam sua meia dúzia de membros da “organização de combate” para “enviá-los” a realizar atentados, da mesma forma agora objetivam montar um “plano” e “armar” toda a massa do povo. Segundo a concepção desses políticos, a preparação da massa de trabalhadores para a revolução equivale a preparar um punhado de terroristas para atentados, só que numa escala maior. Não compreendem que toda a essência, o conteúdo e o caráter da luta revolucionária das massas são totalmente diferentes dos da luta individual terrorista.
A luta de classes do proletariado é e deve ser, em todas as suas formas, portanto mesmo no embate revolucionário, um movimento autônomo de toda a massa.
O partido socialista não pode desempenhar o papel de tutor da classe trabalhadora, no sentido de adquirir as armas para a massa de trabalhadores como que pelas costas, seguindo suas próprias ideias e com seus próprios meios; de providenciar dinamite e revólveres do exterior com dinheiro coletado apressadamente ou de fabricar bombas em casas de conspiradores e entregar essas armas nas mãos do povo, como se pusesse um pequeno sabre e um pequeno tambor na mão de um menino e o enviasse para a batalha. É verdade que armar unidades individuais é apenas uma questão de dinheiro e habilidade da organização envolvida. Contudo, armar a massa na situação revolucionária é e só pode significar o resultado e a revelação da própria força e da maturidade política dessa massa. Isso significa, em termos simples, que a massa só pode e só deve armar-se a si mesma, durante a sua luta, por decisão própria, seguindo seu próprio ímpeto de apropriação das armas, e não no transcurso da compra secreta de armas em lojas, como quando se compra uma espingarda de caça, mas sim pela conquista dessas armas por força do seu movimento, por vitórias parciais sobre o governo. É possível fornecer de antemão algumas dessas formas como exemplo de como é o método massivo e não conspiratório de se armar, como, por exemplo, a conquista de arsenais privados e, muito mais importante, do governo, resultante de ataques, ou o desarmamento de tropas individuais etc. Essa enumeração tem apenas o valor de exemplo, para melhor esclarecimento do ponto de vista sobre a questão do armamento da massa. Mas treinar os trabalhadores seriamente para que no momento de eclosão de uma revolução de rua tomem revólveres, espingardas, machados ou paus ou instruí-los agora sobre como construir barricadas nas ruas, é simplesmente ridículo. Mesmo nas guerras dos Estados militares, quase nenhuma batalha ocorre conforme planos elaborados de antemão no papel pelo generalato, pois o transcorrer da luta e a forma de sua condução são determinados por uma série de condições que simplesmente não podem ser previstas. Um general genial como Napoleão elabora um plano conforme a situação apenas durante a guerra e até mesmo no momento da batalha, e com frequência adota uma tática de guerra inteiramente nova, ou seja, uma forma de conduzir a guerra.
Em revoluções populares, esse general genial não é um “comitê partidário” ou um pequeno círculo pateticamente autodenominado de “organização de combate”, mas apenas a ampla massa que derrama seu sangue. À revelia desses “socialistas”, que imaginam que a massa do povo trabalhador deva ser exercitada para a luta armada sob suas ordens como um bando de soldados, essa massa descobre e constrói, por conta própria, as formas de luta física que mais correspondem às condições existentes em cada revolução. É por isso que cada uma das atuais revoluções modernas na Europa ocidental tinha seus próprios métodos e sua própria tática de guerra contra o governo dominante. Também é por isso que a revolução atual contra o tsar, que se desenrola sob condições totalmente diversas das revoluções burguesas na França e na Alemanha, deve construir seus próprios métodos de luta e de armamento diretamente nas lutas nas ruas. “Elaborar” esses métodos de antemão e “preparar” a massa para os confrontos armados com o governo equivale a alguém ensinar natação sobre uma mesa dentro de um quarto, explicando as regras da natação no papel.
Devemos, então cruzar as mãos e simplesmente esperar a eclosão de novas revoluções de rua, entregando a tutela de milhares de vidas de trabalhadores à graça do destino, e nos consolar com o fato de “que tudo vai dar certo de alguma maneira”?, perguntarão alguns companheiros. De maneira alguma! A social-democracia não pode aguardar pelos próximos acontecimentos de braços cruzados. Pelo contrário! Temos tanto trabalho a fazer que nossas mãos não bastam. O possível armamento dos companheiros é uma dentre tantas outras tarefas que temos. Apenas não podemos enganar nem as massas de trabalhadores nem a nós mesmos com relação à amplitude e à importância desse armamento que podemos adquirir com a força do partido. Simplesmente não se pode falar do armamento da massa do povo pelos socialistas. Apenas a razão saudável e um momento de simples reflexão podem demonstrar a qualquer um que nenhum partido socialista nas nossas condições teria força e meios para armar as centenas de milhares ou milhões das massas populares que vivem em toda a Rússia. Agora, os métodos secretos e dificultosos pelos quais os socialistas podem atualmente adquirir e se apropriar de armas excluem a obtenção dos estoques vultosos que seriam necessários para a ampla massa. No mais, mesmo que admitamos por um momento a possibilidade de tais grandes estoques de armas, apenas armar toda a massa de trabalhadores com essas armas já seria um devaneio. O povo trabalhador não é um regimento de soldados que se perfila nas casernas numa hora determinada mediante ordens para que as armas lhe sejam entregues. Levando em conta tudo isso, de maneira prática e no melhor caso podemos armar os agitadores ativos e grupos de trabalhadores muito pequenos e mais próximos do partido. E esse armamento só tem relevância enquanto meio de defesa do indivíduo e dos grupos individuais de trabalhadores contra ataques dos esbirros tsaristas. Defender-nos e resistir contra as violências dos órgãos governamentais é nossa obrigação, e nesse sentido temos que fazer tudo o que está ao nosso alcance. Mas convencer os trabalhadores de que algum partido socialista tem condições de armar toda a massa do povo trabalhador e de que ele os está equipando com armas suficientes para atacar as forças militares ou para uma batalha decisiva contra a soldadesca significa enganar a massa de trabalhadores.
E esse procedimento seria extremamente perigoso. Hoje, quando a massa do proletariado finalmente entrou na luta política contra o despotismo, toda nossa esperança pela vitória depende do fato de as mais amplas camadas, de centenas de milhares e milhões de trabalhadores, compreenderem que eles mesmos têm que dar continuidade à luta iniciada até o seu fim. O absolutismo só vai cair quando a enorme massa do povo na Polônia e em toda a Rússia entender com clareza que ela mesma deve entrar em luta aberta contra o governo e que ela poderá atingir a vitória apenas com as suas próprias forças, apenas com a própria luta de massas. É por isso também que aqueles que evocam na massa de trabalhadores a ilusória esperança de que ela não deve esperar de si mesma obter todos os meios para a vitória, mas sim que algum outro, algum “comitê partidário”, alguma “organização de combate” lhe entregue tudo de mão beijada, ou seja, as armas para a luta contra o absolutismo ― estes perpetram um crime contra a classe trabalhadora.
O mais importante, porém, é que com o barulho e a sedução dos trabalhadores pelo armamento a atenção do proletariado está sendo desviada das suas tarefas mais importantes. É absolutamente necessário o povo trabalhador compreender que não pode mesmo contar com a vitória sobre o exército tsarista em uma série de batalhas abertas regulares com as tropas (como em uma guerra) simplesmente por meio da sua arma mais forte. Esperar pela vitória sobre o governo do tsar seguindo esse caminho é uma quimera. Com instrumentos de guerra tão poderosos que os Estados militares têm hoje à disposição, com exércitos tão numerosos, com uma artilharia tão bem preparada para o ataque, tantas ferramentas de morte aperfeiçoadas como os modernos canhões e metralhadoras, o povo da rua deve estar preparado de antemão para uma terrível derrota numa batalha aberta regular contra os militares. Portanto, a vitória da revolução popular e a conquista da liberdade política não dependem da esperança de que a massa de trabalhadores obtenha uma vitória militar sobre o exército do tsar em batalhas decisivas.
Nossa vitória e a queda do despotismo só serão possíveis se for possível ampliar, aumentar a dimensão da revolução e a quantidade de pessoas lutando e reduzir o mais possível a dimensão da soldadesca que nos assassina obedientemente sob as ordens do tsar. Isso significa que duas coisas são necessárias:
Engajamento dos trabalhadores do campo na luta revolucionária e
Conquista de uma parte significativa das tropas para a causa da revolução.
A agitação no campo e a agitação nas casernas ― esta é a resposta correta da social-democracia para a questão do armamento da massa popular e sua preparação para a grande batalha contra o absolutismo. E esses meios para os quais a social-democracia aponta não estão enxertados artificialmente na luta de classes do proletariado, como são aqueles planos de “armamento” da massa que, ao fim e ao cabo, baseiam-se no fato de algumas dúzias de jovens senhores ricos da intelligentsia burguesa poderem doar uma boa dúzia ou ainda milhares de rublos para que alguns outros jovens senhores ricos possam viajar ao exterior, contrabandear dinamite e revólveres ou fabricar bombas secretamente.
A agitação no campo e a agitação entre as tropas não são fugas astutas, idealizadas a partir do desespero pela salvação da causa revolucionária. Pelo contrário, surgem de toda nossa luta de classes, são um componente natural das suas tarefas, com as quais a social-democracia terá que ela mesma se deparar, cedo ou tarde, conforme o crescimento do movimento operário.
O trabalhador do campo é uma parte do proletariado explorado e oprimido tanto quanto o trabalhador da cidade. Ele é parte da classe trabalhadora, é também uma vítima da propriedade privada e da ordem social capitalista, tanto quanto o trabalhador fabril, o artesão ou o mineiro. O governo do tsar pune tanto o proletário do campo quanto o da indústria. Por consequência, os trabalhadores do campo têm necessariamente os mesmíssimos interesses de classe, econômicos e políticos que os trabalhadores urbanos. A queda do absolutismo e o anseio consciente pela realização da ordem social socialista é uma questão de vida ou morte, dentro do tsarismo, tanto para o proletariado do campo quanto para o da cidade. Por isso, o lugar natural dos trabalhadores do campo é ao lado dos trabalhadores da indústria, num partido de classe comum dos trabalhadores, nas fileiras da social-democracia.
Se apenas agora nos dirigimos ao proletariado que trabalha no campo com uma agitação mais ampla, não é porque só agora nos lembramos do proletariado do campo e das suas necessidades e porque queremos utilizá-lo apenas como ferramenta para facilitar nossa vitória sobre o absolutismo. Não! Esta é simples consequência da situação diferenciada de que o trabalhador industrial urbano começa a compreender as necessidades de sua classe e a lutar contra a exploração e a opressão mais facilmente e mais cedo do que o povo do campo espraiado pelos vilarejos. Em todos os países a luta dos trabalhadores é iniciada pelo proletariado urbano. Apenas quando a luta dos trabalhadores nas cidades atinge um escopo amplo é que o proletariado industrial consciente começa a incluir na luta também os seus irmãos do campo.
Acontece o mesmo entre nós. O eco da luta operária atual, e dos eventos em São Petersburgo5, da greve geral, do eco da revolução entre nós e na Rússia, ressoaram também em grandes áreas do campo, chegaram também às camadas do nosso povo que sofre a mais terrível miséria, a mais assustadora humilhação e opressão. Agora devemos aproveitar [o tempo] para levar a luz do socialismo e da luta política com toda a força até os trabalhadores do campo, esses negros brancos do capital [diesen weißen Negern des Kapitals] na agricultura, e até os pequenos agricultores, esses escravos da sua pequena propriedade, esses mendigos sobre sua “própria” terra e solo. Não para apenas adquirir alguns milhares de novos braços musculosos e punhos fortes a serviço da nossa revolução política, mas para conquistar novos milhares de cabeças proletárias para o evangelho do socialismo, para acender o fogo do levante e da demanda por liberdade em milhares de corações. Ao aproveitar esse movimento nos vilarejos, temos que levar a eles o lema da luta de classes, sem ocultar as tarefas políticas sob fraseados patrióticos dúbios e covardes, como faz o PPS no seu chamado aos trabalhadores do campo no qual formula suas exigências. Temos que conquistar nossos irmãos do campo permanentemente para o movimento operário, ao esclarecê-los sobre todos os lados da sua vida proletária ou semiproletária, ao esclarecer-lhes todos os seus interesses, inclusive aqueles que têm em comum com todo o povo trabalhador da Rússia: a queda do absolutismo.
Dessa forma, o ganho de novas e poderosas forças para nossa revolução política será apenas a consequência natural da expansão do nosso movimento operário a novas camadas do proletariado, e ao mesmo tempo será também um meio para derrubar o despotismo e um passo em direção à realização do socialismo.
Da mesma forma, a agitação entre as tropas surge em si e por si a partir das tarefas de classe do nosso movimento operário. Mesmo nesse sentido o ponto de vista da social-democracia é totalmente diferente do ponto de vista do PPS social-patriótico. Este se empenha com todas as forças em separar o movimento operário polonês do russo, ele se empenha em convencer os trabalhadores poloneses de que têm demandas e anseios totalmente diferentes daqueles do povo trabalhador russo. Mas em nosso país estão agora soldados russos. Com que palavras o PPS vai se dirigir a eles? Poderá exigir deles que restaurem a Polônia? Isso seria simplesmente falar com as paredes. Ou então deveria exigir deles que lutassem juntamente com os trabalhadores poloneses para melhorar o destino da classe trabalhadora? Mas o PPS segue insistindo em separar os trabalhadores poloneses dos russos. Assim, os soldados russos são para o PPS apenas soldados, apenas inimigos e servos do governo, de quem no máximo se pode apelar aos sentimentos humanos, ao sentimento da justiça e do respeito para uma questão alheia a eles.
Para nós, para a social-democracia, o soldado russo não é apenas um inimigo, uma fera perigosa e armada que queremos domar. Para nós, o soldado russo é sobretudo a ferramenta cega do absolutismo, um proletário, um trabalhador, uma parte da classe trabalhadora russa, e como tal é nosso irmão, membro da mesma classe trabalhadora à qual, segundo nossa compreensão, pertencem tanto os proletários poloneses quanto os russos. Por conseguinte, a causa da nossa luta operária é também sua. Quando esclarecemos o soldado russo que está em nosso país, não clamamos para que tenha compaixão por uma causa alheia a ele, mas para que compreenda seus próprios interesses de classe, para a luta conjunta conosco pela libertação comum, primeiro do jugo do absolutismo e depois das cadeias da ordem social capitalista.
Dessa forma, nossa agitação nas tropas, mesmo que esteja ajustada à revolução corrente, também deve portar o caráter da agitação geral, socialista e classista dos trabalhadores. Naturalmente aproveitamos nessa agitação sobretudo a excitação dos ânimos e as impressões que foram evocadas também no exército pelos banhos de sangue perpetrados nos últimos meses a mando do tsar.6 E o resultado natural do esclarecimento que trazemos, ainda que apenas numa certa parte do exército, será que, no momento em que o povo entrar na luta pela liberdade e a ordem de nos matar for dada, uma parte dos soldados passará para o nosso lado e outra parte hesitará. Essa confusão surgida assim no exército já diminui sua força, sua disciplina, dá superioridade moral ao povo que luta entusiasmado. E temos que contar com tal confusão, com tal hesitação das tropas muito mais do que uma derrota sobre elas obtida com armas assassinas.
Por conseguinte, aqui também as perspectivas da nossa vitória sobre o governo tsarista na presente revolução estão conectadas com todo nosso trabalho de esclarecimento de classe em todas as camadas do povo trabalhador. Não é por saltos artificiais ou ideias aventureiras – para os quais os social-patriotas ou os terroristas russos têm que apelar – que aceleraremos nossa revolução atual e garantiremos sua vitória. A social-democracia, inclusive neste momento, permanece fiel à sua tarefa: o esclarecimento e a organização do proletariado para a luta de classes. A luta presente pela queda do absolutismo é apenas um dos momentos dessa luta de classes, e a nossa vitória nesta revolução será apenas um dos resultados do nosso trabalho, do “armamento” da massa popular – da urbana e da rural, daquela vestida com macacão de trabalho e daquela com uniforme – com a arma mais assustadora que lhe podemos dar, com a compreensão das suas demandas econômicas e políticas de classe.
Vivemos num período de transição, num período de espera. No peito de cada trabalhador consciente treme a impaciência, o desejo de acelerar a vitória definitiva da revolução. Em tal atmosfera surge o afã por algum ato físico e visivelmente revolucionário, e em consequência disso a embriaguez por atentados, bombas ou mesmo discussões acaloradas sobre armas e armamento.
Esse estado e esses sentimentos são compreensíveis. E mesmo assim é preciso contrapor-se a esse rebuliço e a esse barulho supostamente revolucionários com toda a determinação: companheiros que caiam nesse estado de embriaguez acrítica por confusão e balbúrdia demonstram que não estão à altura da tarefa da social-democracia, que não compreendem toda a profunda seriedade dessa luta de classes à frente da qual somos chamados a ficar.
Há duas formas diferentes de acelerar a revolução e desorganizar o governo. Ele é desorganizado pela guerra atual com o Japão,7 pelos kunguzes na Manchúria8, pelas crises de fome e colheitas perdidas, pela perda de crédito nas bolsas europeias. Todos esses são fatores que não dependem da vontade e da ação da massa popular. E é fundamentalmente do mesmo tipo o proceder com bombas jogadas secretamente por indivíduos, a morte ou ferimento de policiais de patente mais alta ou mais baixa, mesmo que os indivíduos que fazem isso se digam socialistas e pensem que estão agindo “em nome” da massa de trabalhadores.
A outra forma de desfazer o governo é aquela evocada pelo surgimento da própria massa popular, algo que não é expressão do acaso, mas sim da consciência política dessa massa: greve geral e greves parciais, paralisação da indústria, do comércio e do transporte, revoltas de militares, paralisação do transporte ferroviário por parte de trabalhadores grevistas, tumultos entre os trabalhadores do campo, resistência em massa contra a mobilização etc.
A primeira forma de evocar caos e confusão – por meio de bombas e atentados – para o governo é basicamente o mesmo que uma picada de mosquito. Na Rússia, centenas de milhares de candidatos estão à espera para assumir o posto de cada policial derrotado, e pelo menos vinte e cinco mil para o posto de um comandante. Uma confusão gerada por bombas pode parecer um perigo sério para o governo apenas aos olhos de quem não consegue pensar e não percebeu nada além do efeito imediato, e que avalia a importância de um evento político segundo os gestos assustados do “público” e da influência sobre os corações e cérebros medrosos da nossa burguesia.
Apenas o segundo tipo – a desorganização do governo por sublevação em massa – é perigoso para o absolutismo, pois esse método desorganiza não apenas o governo dominante, mas ao mesmo tempo organiza a força política que derrubará o absolutismo e construirá a nova ordem. É justamente para essa forma de acelerar a revolução, e apenas para ela, que a social-democracia é convocada.
Essa parece ser uma receita tediosa e insuficiente. Agitação, organização – já fizemos isso por tantos anos. Agora, no momento revolucionário, não podemos fazer algo melhor e mais eficaz?
Quem coloca a questão assim simplesmente não compreende a imensurável força e a eficácia revolucionária da agitação social-democrata.
É justamente essa agitação, e não o bombardeio e ferimento de policiais, que realmente vai destruir o governo tsarista.
Pois essa agitação:
prepara a eclosão ou as eclosões da greve geral, ou seja, o abalo imediato de toda a ordem social e o início da revolução de rua;
expande o fermento revolucionário para a província, para os vilarejos, e com isso estende e amplia o campo de luta de tal maneira que os meios físicos do governo não mais bastarão para dominar essa conflagração;
e, por fim, enquanto conclama as mais amplas massas populares para a luta aberta contra o governo, cria uma força que, como vimos em todas as revoluções da Europa ocidental, ergue barricadas, conquista armas, e aqui e ali derrota e desarma as tropas, conquistando parte delas para si e levando-as consigo à luta.
É assim: a última palavra no confronto com o absolutismo será a força física. Mas essa força física não vem de alguns audazes que lançam bombas. Essa força física é desenvolvida pela própria massa popular que entra na revolução. E essa força preparamos nós mesmos, os social-democratas, quando levamos a conscientização política e de classes às fábricas urbanas, às choupanas dos vilarejos e às casernas militares, quando despertamos a vida política, o levante e a resistência em todas as esferas do povo trabalhador, quando distribuímos centenas de milhares de proclamações, organizamos em toda parte centros de trabalhadores conscientes, instamos em toda parte a massa a resistir ao governo, aproveitar cada momento para provocar confrontos entre o povo e o governo.
Sim: agitação e organização! Esses são lemas antigos, tão antigos quanto a luta de classes do proletariado, e permanecerão vivos enquanto durar a ordem social capitalista. Mas cada fase da luta, cada momento histórico traz para nossa agitação vida nova e renovada, um novo conteúdo, uma nova força, confere-lhe uma nova forma. Hoje o conteúdo e a vida da nossa agitação consistem em despertar as massas de trabalhadores para a revolução em nome de seus interesses políticos e de classe. E é apenas dessa forma, diretamente em confrontos massivos do povo com o governo, que surge, juntamente com a consciência política, a força física suficiente para a vitória sobre o absolutismo, refugiado atrás de baionetas e metralhadoras.
Czwerwony Sztandar [Bandeira Vermelha] (Zurique)
Nº 25 de abril de 1905, suplemento, p. 1-4.
[Tradução: Daniel Martineschen]
* Publicado em Rosa Luxemburg, Gesammelte Werke 1/2, p.541-553.
1 O Partido Socialista Polonês (PPS) foi fundado em novembro de 1892 em Paris durante um congresso de socialistas poloneses liderados por Boleslav Limanovski. O partido seguia uma política reformista-nacionalista. Seu programa incluía a luta pela independência da Polônia, a qual não deveria ser conquistada pela via revolucionária com o proletariado russo, e sim por uma gradual mudança das condições sociais na Polônia. Dentro do PPS havia uma ala esquerdista que se cindiu em 1906.
2 Em 1902, os Socialistas Revolucionários russos surgiram como partido pequeno-burguês, apoiado no campesinato, a partir dos restos do movimento populista russo (Narodnik). Eles negavam o papel de liderança do proletariado no movimento revolucionário e queriam eliminar a autocracia tsarista e criar uma república democrática por meio do terror individual.
3 Rosa Luxemburgo se refere ao Partido Socialista Polonês.
4 Uma onda de rebeliões de camponeses em 1860/1861 conduziu ao levante popular de 22 de janeiro de 1863 no reino da Polônia, na Lituânia, na Bielorrússia e em partes da Ucrânia contra a opressão nacional e social, o qual pôde ser derrotado brutalmente porque nenhuma liderança nacional resistiu.
5 Em 22 de janeiro de 1905, em São Petersburgo, 140 mil trabalhadores foram até o Palácio de Inverno para reivindicar ao tsar a melhoria de suas condições de vida. Os manifestantes, entre eles mulheres e crianças, por ordem do tsar, foram recebidos a tiros. Mais de mil pessoas morreram e cerca de cinco mil ficaram feridas. Esse banho de sangue desencadeou em toda a Rússia uma onda de greves de protesto e de agitação entre os camponeses.
6 Depois do domingo sangrento de São Petersburgo de janeiro de 1905, no reino da Polônia – especialmente nos centros industriais de Varsóvia, Łódź, Radom, Kielce, Częstochowa e nas bacias carboníferas de Dąbrowa – ocorreram confrontos entre trabalhadores poloneses e o exército russo nos quais centenas de grevistas foram mortos. O ponto alto dessas lutas foi atingido em maio/junho de 1905.
7 Em janeiro de 1904 o Japão começou uma guerra imperialista contra a Rússia pela hegemonia no Extremo Oriente. A grave derrota das tropas russas em 1905 enfraqueceu o tsarismo e aguçou a crise revolucionária na Rússia.
8 Os kunguzes, bandos armados de salteadores da Manchúria, foram utilizados pelo Japão para participação em lutas políticas durante a guerra russo-japonesa.